sábado, 29 de dezembro de 2012

O fruto proibido


Começo a pensar que a prevenção e combate à toxicodependência que se faz em Macau fora do âmbito privado é feito por gente que não sabe o que é droga. A sério. O tal Gabinete que apresenta aquelas enormidades a que chama “estatísticas” é composto por gajos que nunca viram droga na vida, ou só ouviram falar de droga na televisão e nos filmes. Enquanto a Polícia prende, o Ministério Público acusa e a prisão recebe os traficantes e afins, no que toca à prevenção e à análise do problema da toxicodependência e do consumo em geral, prima-se pela incompetência e até alguma ingenuidade.

Assim ficamos sempre a saber que o consumo diminuíu. Yupi! Haja saúde. Depois vem sempre um “mas” qualquer que contraria por completo essa asserção. Diminuíu, MAS há mais recaídas. Diminuíu MAS há cada vez mais jovens a experimentar. Diminuíu MAS consome-se cada vez mais em casa. Diminuíu MAS consome-se em maior quantidade. Quer dizer, se calhar diminuíu porque foram presos mais consumidores, e talvez quando se anuncia a tal diminuição no número de consumidores, aparecem novos que substituíram os que tiveram menos sorte, coitados.

A informação é confusa e contraditória, e alguma chega a roçar o ridículo. Por exemplo o facto de se consumirem substâncias em casa. Se eu fosse toxicodependente ou adepto das drogas recreativas, preferia consumi-las no conforto do lar do que na rua, ou noutro local frequentado por gente que se calhar não ia achar muita piada e podia alerter as autoridades. Além disso algumas drogas requerem utensílios que não se encontram em bares ou cafés e não são fáceis de transportar no bolso, como seringas, colheres, papel de alumínio, cachimbos de água, etc. Deve ter sido uma surpresa enorme para esta gente quando se constatou que alguns utilizadores consomem – pasme-se – em casa! Onde vivem os pais, os irmãos e o cão! E eles que sempre pensaram que a droga se consumia principalmente ao ar livre, por causa da componente da “rebeldia” e da “afirmação”, uma teoria sempre atirada para cima da mesa para explicar o facto de cada vez mais jovens começarem a consumir. Psicólogos de vão de escada.

Um dos maiores problemas das campanhas de prevenção é não especificar que existem vários tipos de drogas, algumas piores que outras. Isto até está tabelado por lei, e não é novidade nenhuma. Como tive a sorte de obter o grosso da minha educação num lugar onde existe uma visão mais larga, aprendi que a imensa variedade de drogas existentes não se limita ao grupo da “droga”, e que toda a “droga” é má, porque é “droga”, ponto final. Não são todas as drogas que provocam dependência, e a designação de “drogas duras” e “drogas recreativas” não é um eufemismo para iludir as pessoas de que existem drogas que não fazem mal. A cannabis, que faz tanto ou menos mal que o tabaco e certamente menos mal que o álcool não foi sempre uma “droga”, ou sequer uma substância ilegal – convém estar dotado de algum conhecimento histórico, também. Mesmo a teoria de que se trata de uma “gateway drug”, que pode levar ao consumo de drogas pesadas carece de uma fundamentação mais convincente que a simples “habituação” que leva a que se procure “uma substância mais forte”. Há gente que consumiu ou consome cannabis há décadas e nunca mudou para outra substância.

Existem drogas naturais e sintéticas, e destas últimas nem todas transformam um jovem inteligente e saudável num bocado de merda que se arrasta pelas ruas aos gritos, como vemos em algumas das campanhas televisivas. A droga na sua generalidade não destrói carreiras e famílias, não aliena amigos, não provoca danos irreversíveis à saúde e não “mata” assim com tanta facilidade. Pelo menos não representa um perigo muito maior ou sequer ligeiramente maior que outros comportamentos de risco. A obesidade mata mais que a maioria das drogas e o seu consumo frequente, e que eu saiba a obesidade ainda não é uma “droga”. Como vão estes profetas da desgraça explicar que existam indivíduos dependentes da heroína – a rainha das drogas – há 30 ou 40 anos, e ainda estão vivos? O próprio alcoolismo mata mais a longo prazo que a heroína. A maior parte das drogas são de consumo controlável, e há indivíduos perfeitamente funcionais e até bem sucedidos que as consomem regularmente. Venham desmentir isto, se forem capazes.

A mensagem inicial que se passa é que a droga é uma “armadilha”, e que a sua mera existência é uma trama diabólica com o objectivo de destruir a humanidade. Quando a mensagem inicial que se passa é errada, então nada mais a partir daí faz algum sentido. Isto pode parecer uma surpresa para alguns, mas quem consome drogas fá-lo para se sentir melhor, e não pior. Para se sentir bem, e não mal. As razões porque o fazem são diversas, e se o fazem porque têm algum problema familiar ou pessoal, esse problema não foi certamente causado pelas drogas que passaram a consumir como escapatória. Eu próprio confesso que fui vítima deste preconceito…quando tinha 7 ou 8 anos. A minha ignorância infantil levava-me a pensar que a droga era um instrumento de agentes do mal destinados a corromper os anjinhos (o que até se pode considerar um pensamento elaborado, atendendo à minha limitada capacidade cerebral de então). Depois cresci e aprendi que a droga é uma cultura muito própria, a tal “drug culture”, que tem uma História muito particular, e que não é o produto de nenhuma falência social ou decadência dos valores. Sempre existiu, das mais variadas formas, e antes do evento da criminalização já se fazia muita arte, arquitectura e literatura “psicadélica”.

Já defendi neste blogue a legalização de todas as drogas para que se corte pela raíz a essência do “problema”: o lucro. A droga é acima de tudo um negócio, e realisticamente, não é produzida em massa à escala mundial para que as pessoas se divirtam ou se abstraíam dos seus problemas. É produzida porque é lucrativa, e o facto de ser ilegal torna-a mais cara, e portanto um negócio ainda mais apetecível. Legalizando todas as drogas, mesmo as ditas pesadas, torna o seu acesso mais facilitado e retira-o da esfera da criminalidade, baixa os preços representando uma menor carga financeira para os toxicodependentes e as suas famílias, permite um melhor controlo de qualidade evitando muitas mortes por consumo de drogas adulteradas, ajuda a prevenir a propagação de doenças derivadas da partilha de seringas, e o mais importante de tudo: pode ser que uma vez que deixe de ser bastante lucrativo, há quem desista de as produzir e angariar novos consumidores. É assim tão disparatado?

O exemplo de Macau é gritante, e é pena que não se assuma o que é por demais evidente: a luta contra a droga está perdida. O Gabinete para a Prevenção e Tratamento da Toxicodependência, e agora deixando de lado o facto de que está servido por gente que não percebe nada de droga, está de pernas e braços atados. Em Macau quais são as alternativas para um jovem que não tem nada que fazer? Já sei, o desporto, que é apresentado como uma panaceia anti-droga, ao ponto de se dar a entender que quem não pratica desporto arrisca-se a cair nas malhas da droga. E realmente quem os pode censurar? Que outras opções existem para um jovem adulto nas áreas da cultura, da arte ou do entretenimento para ocupar o seu tempo livre? Que outra formação profissional de monta existe que não esteja ligada ao jogo e aos casinos? Se não está na escola ou em casa com os pais a jantar e a dormir, anda pelos salões de jogos, discotecas e salas de karaoke, onde como se sabe, não é difícil encontrar drogas, e daquelas mesmo mázinhas, que se engolem e que se cheiram.

Enquanto a recuperação dos toxicodepentes e o combate ao tráfico e à criminalidade são feitas de forma competente no território, a prevenção continua a marcar passo, e a informação é deficitária. Não se educam os jovens sobre os efeitos das drogas, do seu impacto social, ou mesmo da sua história, origem e composição, porque não? Diz-se apenas: “não se metam nisso, porque é mau”. Se lhes dizem que é “mau” simplesmente porque sim, então estão a despertar-lhes uma curiosidade que não existiria se tratassem do assunto de uma forma mais aberta, usando bases científicas para sustentar os seus argumentos. Uma campanha educativa bem feita era até capaz de afastar os jovens do Starbucks, porque “a cafeína é um estimulante”. Assim só dão a conhecer o fruto proibido, que como se sabe, é o mais apetecido.

1 comentário:

www.pedradosertao.blogspot.com disse...

Passando para deixar desejos de um 2013 cheio de paz, prosperidade e alegrias para nossos seguidores...e mais poesia para alegrar a vida!

Abraço do Pedra do Sertão