Esta semana tomei a liberdade de “roubar” ao meu amigo Manuel Cruz um desabafo seu nas redes sociais, que aqui passou a reproduzir, com a devida vénia.
Permitam-me um desabafo: tenho amigos de direita. Mas nem um – nem um! – diz o que leio de certa gente que comenta aqui no facebook. Trump é um génio. Costa, um monhé horroroso e usurpador e ladrão. Pretos e ciganos, nem vê-los. Árabes, essa raça maldita. Os gays, trans, lésbicas e quejandos deviam ser exterminados. Comunistas, uns facínoras sanguinários. No tempo de Salazar é que era bom.
Fico com o coração apertadinho, com um nó na garganta. Não consigo entender tanto ódio a quem nunca nos fez mal, a quem é diferente de nós e que, por isso mesmo, nos completa. Não consigo entender tanta paixão por abjecções como o patrão da Casa Branca. Não consigo, por mais que tente, sentir que esta gente é gente.
Eles sim, estão cá a mais. Que belo país não se faria com os ultras de todo o mundo. Eles estariam no paraíso. E, nós, mais arejados.
Como o entendo tão bem, meu caro, e partilho da sua angústia. Como se sabe, vamos ter eleições autárquicas em Portugal no próximo domingo, e apesar de se tratar apenas do exercício da democracia na sua variante do poder local, os resultados deste sufrágio vão servir também de barómetro à satisfação do eleitorado pelo actual executivo governamental. Assim dizem. Num país cada vez mais bipolarizado entre direita e esquerda, e com a retórica a subir cada vez mais de tom, prevê-se uma derrota pesada da direita, e por culpa própria. É que esta direita que anda por aí à solta não é a direita liberal e progressista da via da social-democracia em que tanto eu como muitos – possivelmente também confusos por esta altura – se revê.
Esta direita espalha brasas é a direita anti-democrática, a extrema-direita clássica, e não só – houve parte da “velha guarda” que resolveu sair da toca e dar sinais de vida. Esta direita “ultra” ainda faz pouco eco em Portugal, mas tem sido responsável pelos maiores equívocos a que temos assistido ultimamente na Europa e no mundo. Não me surpreendeu tanto o ressurgimento da extrema-direita nas últimas eleições da Alemanha, que ficou expresso em “apenas” 13% dos votos. E porquê apenas? Com as tácticas de medo, a propaganda chinfrim e o maniqueísmo que vêm vindo a ser aplicadas na Europa de há três ou quatro anos para cá, podiam ter chegado a uns 20%, limpinhos.
Afinal esta direita, a gémea má da direita como deve ser, conseguiu convencer os rústicos da Provença que nunca viram um árabe na vida de que estes “vinham aí” para o “roubar”, “matar” e “violar as suas filhas”, ou para “destruir a sua cultura e modo de vida”. Foram estes que recrutaram uma legião de aposentados britânicos para votar na saída da União Europeia, com a (falsa) promessa de injectar o dinheiro de Bruxelas no seu próprio plano nacional de saúde. Guardando o melhor para o fim, foram estes meninos que sentaram na Casa Branca a pessoa mais inepta que se podia recear, e sob o pretexto de que ia “vazar o pântano” da política em Washington. Não apenas se absteve de vazar aquele, como tem aberto uns outros quantos em seu nome.
Em Portugal estamos mais ou menos descansados – ainda. Esta direita “mutante” faz sobretudo alarido nas redes sociais, onde é mestre “confusionista”; adultera factos, difunde o ódio, urde teorias da conspiração delirantes, e vai contra aquilo que chama “multiculurismo”, que protesta – depois mete-se no Mazda e vai comer um “kebab”, e chama de “marxistas” a todos que não concordem com ele em género e grau. Sobre o isso do multicularismo, para mim é como tudo: tem virtudes e tem defeitos. A eliminação pelo defeito já foi tentada antes, e com os resultados desastroso que se conhecem. A direita convencional não se deixa levar pelo conceito, mas às vezes deixa-se contagiar; ora pede mais mortos nos incêndios, ora apoia um candidato às autárquicas que promove abertamente a segregação de uma minoria, uma sucessão de momentos infelizes. Tudo isto prolifera e reproduz-se a cobro de uma nova interpretação do conceito de “politicamente correcto”, que passou a ser uma coisa “má”. Em suma, o tal “desprezo pelo politicamente correcto” passou a servir de pretexto e cobertura para que se balbuciem ou se escrevinhem todos os tipos de disparate.
Esta bipolarização é péssima, e leva a uma espécie de obsessão que se extende muito para lá dos limites do debate (?) político. O fanatismo tem aparecido em força na clubite futebolística, na religião, nos direitos dos animais, nos defensores do Tony Carreira, nos anti-Ronaldo, enfim, há de tudo, como na farmácia. Hoje ter uma convicção é mais ou menos como ter uma doença crónica: está lá, chateia um bocado, e o único tratamento é dar sempre razão ao paciente. Assim no domingo que vem muito provavelmente o sortido de esquerdas terá mais uma razão para festejar, a direita radical fica a resmungar, e nós, bem, ficamos a suspirar por um dia destes, quando todo este catarro democrático passar e deixemos de ser tão bipolares.