- Epá ‘tás porreiro ou vais pró Barreiro?
- Não pá, vou p’ra Almada, não pagas nada?
Os leitores que me conhecem pessoalmente, especialmente os amigos e conhecidos mais próximos, sabem que sou originário da margem sul de Lisboa, distrito de Setúbal, onde sempre vivi antes de vir para Macau. Resumindo, sou um “manes” do Montijo, onde cresci, mas, e com alguma pena, não adquiri aquele sotaque giríssimo. O meu pai tinha uma musiquinha, a minha irmã que ainda lá vive também, e tinha uma tia que tinha um “montijense” tão carregado que ainda hoje me divirto a imitá-la. Curiosamente cresci a pensar que o nome “Gertrudes” era na realidade “Estrudes”, que era como se pronunciava no Montijo. Temos uma palavra própria para definir uma pessoa suja, asquerosa ou leviana: um “mandongo”, ou na sua versão feminina, uma “mandonga”. Uma porca, portanto. Nunca ouvi mais ninguém em sítio nenhum usar esta palavra. A um indivíduo indigente, vadio ou com tendências criminosas chamávamos de “gandim”. Existem ainda outras especificidades do ser montijense, mas não é disso que quero tratar neste post. É claro que como aldeano convicto (o Montijo chamava-se até aos anos 40 do século passado Aldeia Galega do Ribatejo), os meus heróis são os meus conterrâneos: os futebolistas Paulo Futre e Ricardo “Labreca”, o guardião herói das balizas lusitanas no Euro 2004 e mundial de 2006, a cantora Dulce Pontes, o compositor clássico Jorge Peixinho, o apresentador José Fialho Gouveia, estes dois últimos já falecidos, e epá, e mesmo aquele gajo dos D’ZRT, o Paulo Vintém, tem a aura de ter nascido naquela terra maravilhosa, que fica apenas a meia-hora de barco de Lisboa.
Mas do eu queria mesmo falar era da Margem Sul propriamente dita. Fiquei comovido com
esta homenagem do Rui Unas aqui há uns anos, pois esta região, que conheço como a palma da minha mão, tem muito que se lhe diga. É um encanto. Isto são mais do que dormitórios de Lisboa; são terras com um orgulho e uma cultura muito próprios. Todas as localidades da Margem Sul têm os seus “índios”, malta que deixa a pele para defender a sua zona. É conhecida a rivalidade entre o Montijo e Alcochete, concelhos vizinhos que distam apenas 7 quilómetros um do outro. Vastas vezes assisti a cenas de porrada no parque do Montijo entre “aldeanos” e betinhos alcochetanos. Até ao início dos anos 90 a Escola Secundária de Alcochete não tinha o ensino complementar (ia só até ao 9º ano), e os alcochetanos sub-18 vinham estudar no Montijo. Era um autêntico regime de apertheid. Um dos maiores motivos da rivalidade era o facto de que em tempos longínquos a linha de comboio (entretanto já extinta) ter passado pelo Montijo, em vez de Alcochete. Até aos anos 80, uma simples referência ao “comboio de Alcochete” era suficiente para levar o mais pacato alcochetano aos arames, arrancando da cabeça o seu famoso barrete verde. Ir a Alcochete e perguntar onde ficava o comboio era quase suicídio. Eles levavam aquilo muito a peito. Hoje Alcochete é uma vila (ah ah o Montijo é cidade desde 1985) desenvolvida, pacata, e que tem mesmo uma praia onde a família real portuguesa ia a banhos, antes de se tornar numa porcaria.
O que é mesmo giro são os nomes, especialmente as freguesias dos concelhos. O concelho do Montijo, por exemplo, tem lá uns Sarilhos Grandes, um local onde pouca gente gostaria de viver – fica mal escrever na morada “Sarilhos Grandes”, ou em inglês “Big Trouble”. Existe ainda um Sarilhos Pequenos (“little trouble”?), que fica já no concelho da Moita. Ironicamente Sarilhos Pequenos (onde os seus nativos e residentes são conhecidos como “xarecos”, e de onde é originário o ex-avançado e ex-treinador do Sporting, Manuel Fernandes) é maior que Sarilhos Grandes. Sabiam disto? Ah! Mas voltemos a Alcochete, que simpaticamente designávamos por “Alcoshit”. Este patético concelho engloba o Samouco, um sítio deprimente onde se diz que se vai “meter água”. Nunca percebi a origem desse bordão, “ir meter água ao Samouco”. Samouco (ou “sámoque”, como se diz no Montijo) deve ter sido baptizado em homenagem a algum indivíduo de apelido Sá que era duro de ouvido. Sá+mouco. É um lugarejo que não interessa nem ao menino Jesus. A outra freguesia do concelho de Alcoshit é S. Francisco, que fica entre o Montijo e a vilinha dos bois. Posso dizer com algum orgulho que passei muitas vezes por S. Francisco, e nunca precisei de ir à Califórnia. S. Francisco, que em tempos idos se chamava Sabonha (fizeram bem em mudar o nome), fica localizado na auto-estrada que liga o Montijo a Alcochete. Os seus habitantes vivem todos à beira da estrada. São uns “borda-da-estrada”, coitados.
Vamos então à Moita e ao Barreiro, dois concelhos super-giros. No concelho da Moita do Ribatejo (que fica na Estremadura, estranhamente) pontificam, além do anteriormente referido Sarilhos Pequenos, outras localidades com nomes hilariantes. Na própria freguesia da Moita encontra-se um Penteado, onde não deve ser difícil arranjar um barbeiro, mesmo num Sábado à tarde. Temos ainda nesta apetitosa ementa Alhos Vedros, que foi sede de concelho até 1855, e tem uma história riquíssima, Vale da Amoreira, que apesar do nome convidativo é uma espécie de gueto habitado pela pior espécie de gandins, Gaio-Rosário (também conhecido por Rosarinho), onde se realizam as famosas largadas de touros na praia, e a minha favorita: a Baixa da Banheira. Sabem como se chama o bairro rico da Baixa da Banheira? Baixa do Jacuzzi! Estou a reinar. Na Baixa da Banheira não vive ninguém rico. Uma coisa é a Quinta da Marinha, outra é a Baixa da Banheira. Talvez este nome absurdo se consiga explicar com uma das suas designações antigas: Terras Baixas da Banheira do Tejo. Assim era melhor. Menos vergonhoso para os banheirenses, pelo menos.
Passemos ao Barreiro e vamos logo ao lugar com o nome mais surrealista: Coina. Este sítio assim baptizado pelo rio Coina, que nasce na serra da Arrábida, tem um nome que não lembra ao diabo. Ninguém pensou que um sítio chamado Coina seria no futuro motivo de chalaça? Existe no concelho de Pedrógão Grande, distrito de Leiria, o lugar da Picha. Quem sabe se este não devia ser geminado com a Coina? Ficava o par ideal. Além da Coina, o Barreiro conta ainda com o Lavradio, onde fica o amplo e muito bonito estádio Alfredo da Silva, baptizado com o nome do empresário português da indústria fabril, e onde jogava a gloriosa ex-CUF e ex-Quimigal (actualmente Fabril Barreiro). Nos anos 60 e 70 os concelhos da Margem Sul eram pródigos em futebolistas talentosos, e chegava a ter três ou quatro equipas na divisão principal. Seguiu-se a falência, a decadência e mesmo a extinção de alguns clubes. Depois há freguesias com nomes mais ou menos normais: Palhais, Santo André, Verderena ou Alto do Seixalinho. Existem algures entre a Moita e o Barreiro duas localidades com nomes mesmo “rasca”: a Barra Cheia, e não sei porquê, mas a simples menção do nome dá-me vontade de urinar, e o Chão Duro, onde não é recomendável cair de cabeça.
E já que falámos do Alto do Seixalinho, vamos ao concelho do Seixal, assim chamado por causa dos inúmeros seixos encontrados nas praias ribeirinhas adjacentes. Curiosidade histórica: sabia que foi no Seixal que Vasco da Gama e o seu irmão Paulo construíram as naus que os levaram às Índias? Aposto que pouca gente sabe que foi no Seixal que começou uma das maiores proezas dos descobrimentos. Podemos mesmo dizer que o Seixal é parte fundamental na génese da globalização. Penso até que o próprio Vasco da Gama queria mudar o nome de Goa para “Novo Seixal”, mas não deixaram. Hoje em dia o maior motivo de orgulho dos seus 30 mil habitantes é ter lá a Academia do Benfica. Orgulho ou vexame, depende do ponto de vista. Foi violentamente afectado pelo terramoto de 1755, mas os bravos seixalenses arregaçaram as mangas e há 100 anos o Seixal era o principal centro corticeiro do país. Ena. Dos seixalenses, que etnicamente são semelhantes aos almadenses, tenho uma recordação engraçada. Antigamente só haviam barcos para o Seixal durante a semana (o Vasco da Gama adoptou a semana inglesa, portanto), e eram apanhados no extinto cais da Praça do Comércio, no mesmo sítio dos barcos do Montijo. Um Domingo vinha eu a voltar de Lisboa e estavam dois jovens casais de seixalenses no barco comigo, a pensar que estavam a ir para o Seixal. Disse-lhes que não, que só havia ligação ao Seixal no dia seguinte e eles ficaram meio sem saber o que fazer. Como bom samaritano que sou meti-os numa camioneta para o Barreiro e disse-lhes para fazer daí a ligação ao seu tão amado Seixal. Já nesse tempo era eu um gajo muito fixe e prestável. E bonito, também.
O concelho do Seixal é riquíssimo em freguesias com nomes engraçados, e cuja origem aguça a curiosidade. Assim temos a Aldeia de Paio Pires, que levou o nome do conquistador medieval Paio Peres Correia, que tem honras de estátua no centro da localidade e tudo. Este pelo menos tem uma explicação mais ou menos plausível para o nome de “paio pires”, e não tem nada a ver com um enchido e um pratinho. Além de Paio Pires temos a Amora, um nome fresco e doce, a Arrentela, e uma outra criada por desmantelamento destas três: Fernão Ferro, que como dizia a rábula do Herman José (aquela do “eu é mais bolos”), “é um senhor muito simpático”. Há ainda uma tal localidade chamada Cruz de Pau, na freguesia da Amora. O nome de “Pau” não fica bem em nada, sinceramente. Depois não querem que os brasileiros se riam de nós. Há ainda na Amora um tal Fogueteiro, uma homenagem àquela flatulência matinal mais ruidosa. Finalmente temos a Vila de Corroios, que acreditem ou não, tem mais de 600 anos de história. Corroios, que parece uma adulteração de “correios”, engloba entre outros um sítio chamado Miratejo, que conheço bem, e que apesar do nome bonito não passa de um aglomerado de prédios sem imaginação nenhuma.
Finalmente chegamos a Almada (do árabe
al-ma’adan, ou “a mina”), a cidade mais próxima de Lisboa na Margem Sul. Fossem para ali mandar os génios que mandam em Macau, e já tinhamos aterros que davam para ir de Lisboa a Almada a pé. Em Almada vivia a minha saudosa avó materna, e conheço bem esta cidade e o seu concelho. Quem chega de Lisboa numa viagem de dez minutos no cacilheiro, e como o nome indica, chega a Cacilhas. Esse nome tem origem no tempo em que chegava de Lisboa de barco para a Margem Sul, e nesse local haviam burros que se podiam alugar para fazer passeios por Almada. Quando se preparava o burro dizia-se frequentemente “dá cá cilhas” (cilha é a cinta que prende a sela e a albarda). E Cacilhas ficou. Existe um bordão muito engraçado a este propósito. Quando se quer mandar alguém para tal sítio, levanta-se o dedo do meio e diz-se “monta aqui e vai para Cacilhas”. Eu até gosto de Cacilhas. Tem lá umas marisqueiras e cervejarias bem catitas. Fica ali também o estaleiro da Lisnave, que nos seus tempos mais prósperos empregava operários que iam trabalhar com a mesma alegria com que os sete anões iam minar diamantes. Depois, e isto é a opinião generalizada, “vieram os comunas e deram cabo daquilo”. O concelho de Almada é um bastião comunista por excelência, e a presidente da câmara é uma tal Maria Emília de Sousa, uma “camarada” que se eternizou no poleiro, um reinado que só carece de renovação de quatro em quatro anos em forma de eleições, e estas são apenas uma mera formalidade. Não me lembro de outro autarca a mandar em Almada além desta senhora.
O maior cancro deste concelho é um lugar chamado Cova da Piedade. Só o nome já assusta, e até dava um bom nome para um filme de terror, e é mesmo um sítio muito pouco recomendável. Os piedenses – assim são chamados os coitados que ali vivem – que me desculpem, mas tenho muito más recordações desta freguesia apensa á cidade de Almada (dá para ir a pé). Na freguesia do Pragal fica o Cristo-Rei, o Corcovado português. É lamentável terem feito uma estátua do nosso Salvador num sítio com um nome destes, “Pragal”. Existe outra freguesia chamada Feijó, que mais parece assim o nome de um cigano anão e maneta. Coincidência ou não, o “mercado dos ciganos do Feijó” é assaz conhecido e bastante popular. As vendedoras ambulantes ciganas chamam toda a potencial freguesia ora de “meu amor” ou de “filha”, dependendo do género. Temos ainda o Laranjeiro, a Sobreda e a Trafaria, todos sítios tristes e desinteressantes, apesar de “Laranjeiro” ter um nome apelativo. Mas no fim é uma desilusão. O concelho redime-se com a Costa da Caparica, a Pattaya portuguesa e morada do restaurador benfiquista “Barbas”, o Zézé Camarinha da Margem Sul, mas sem o mesmo “sex appeal”. Mas depois fica tudo estragado com a existência de umas tais Charneca da Caparica (onde viveu a minha tia) e o Monte da Caparica. (Monte de Caca Rica?). E é assim a Margem Sul, o lugar onde são feitos os sonhos.