Subiu ontem ao palco do Centro Cultural de Macau a peça em Patuá “Aqui Têm Diabo” – crónica dos bons fantasmas”, mais um – sempre aguardado – trabalho dos Doçi Papiaçam di Macau, o grupo de teatro amador da língua maquista liderado pelo incansável Miguel Senna Fernandes. Tinha muita curiosidade sobre o que ia encontrar este ano, uma vez o tema era ambíguo: almas do outro mundo e superstições. Ao contrário de temas de outros anos anteriores, como os pandas, a culinária macaense, os casinos ou os advogados, este podia ser sobre qualquer coisa…ou nada. E não foi mesmo nada de especial.
Não fica fácil criticar o trabalho dos Doçi, uma vez que nos trazem algo de único e original. É importante preservar vivo o patuá como anexo da identidade macaense, nem que seja apenas a mexer os olhinhos, e os Doçi fazem isso melhor que ninguém. Posso afirmar sem espécie de dúvida nenhuma que o fim destas peças anuais deste grupo amador seria o fim do patuá. Isto é como visitar um tio ou um avô distante que vemos uma vez por ano. Mas isto não significa que não possamos também ser críticos e exigentes, portanto vamos ao que correu mal ontem.
Ao contrário de anos anteriores, o enredo não foi encadeado, ou seja, não existia uma trama central. Existiam quatro histórias, um tanto ou quanto ao estilo de “Twilight Zone”. Umas foram mais bem conseguidas que outras, e as interpretações foram também inconsistentes. A primeira parte era intitulada “Busca Vôs” (À tua procura). Começamos com uma introdução dada por dois fantasmas, interpretados por Luís Machado e Alfredo Ritchie. Fiquei com pena de que não de pudesse tirar mais destes dois experientes actores, que ficaram encarregados de fazer a “crítica dos costumes” habitual nas peças do patuá. Ficou a sensação de que havia pouco para falar. Chegaram mesmo a haver momentos de silêncio desconfortável na plateia. Este ano o risómetro registou um dos níveis mais baixos de sempre.
“Busca Vôs” introduziu nestas andanças do patuá quatro jovens actores da Escola Portuguesa de Macau. Os miúdos estiveram bem, e Miguel Senna Fernandes esteve ainda melhor em iniciar estes jovens no “doce veneno” da representação na língua maquista. Gostei especialmente de Vera Amorim no papel de espírito. Fez-me lembrar um Olívia do Rosário dos outros tempos. A aposta na juventude foi uma aposta ganha; a plateia divertiu-se sem se importar muito com o argumento propriamente dito. Um conselho ao jovem Hermes Trabuco: mais naturalidade, s.f.f.. Quedas e cambalhotas até não ficam mal, mas um pouco mais de teatralidade e menos
slapstick davam melhor resultado.
O segundo sketch foi o meu favorito. “Mofino di Câxa”(O feitiço das caixas) foi de longe o mais hilariante, o mais
divertido, o mais original. Nesta cena brilhou Marina de Senna Fernandes, irmã do “vosso próprio”, que merecia quase um Emmy para melhor actriz em musical e comédia. Em resumo, Natalina é uma recém-viúva que leva as cinzas do marido para casa. Numa última noite com o defunto, experimenta vários orgasmos (isso mesmo, os Doçi ultrapassaram a última fronteira!) com a alma do
de cujus. Entretanto um funcionário do crematório, Crispim (Carlos Alberto Anok Cabral) bate-lhe à porta dizendo que houve um engano e que as cinzas tinham sido trocadas. Marina, mais preocupada com o próprio prazer, manda Crispim embora com a cinzas do seu falecido (interpretado por Aleixo Siqueira, que dava para fazer de Adolf Hitler), e regressa aos prazeres carnais com o fantasma desconhecido, interpretado pelo nosso Daniel Pinto, vulgo Dani. Gostei do detalhe mórbido-erótico da cena, da insinuação do sexo interracial, foi um momento muito bem conseguido.
Seguiu-se ”Vai Casa” (Leva-me para casa), um sketch que apostava na crítica social, nomeadamente (e mais uma vez) aos turistas da China continental. Neste sketch temos José António Carion Júnior e Sheroz Pernencar no papel de dois malandrecos maquistas sempre dispostos a ganhar umas massas, e um fantasma muito “dread”, interpretado por Herman Comandante. Para mim este foi um dos grandes erros deste ano. Herman Comandante tem talento para um papel muito melhor do que o de uma alma penada inspirada no E.T. que fala chinês com uma voz fininha. Mesmo assim, as maiores risadas foram arrancadas por Lou Pui Leong, um veterano dos Doçi, que faz o papel de um guia turístico desleixado e indiferente, que improvisa momentos da história de Macau que foram um dos momentos altos da noite. Mais uma vez, muito pouco para quem esperava rir mais.
Aproximava-se o intervalo, e eis que acontece mais uma “banhada”. Durante o vídeo que encerrava a primeira parte, falhou o VT do Centro Cultural, e intervalo de dez minutos deixava muitos ombros encolhidos. Lá fora no fumatório ouviam-se críticas menos positivas. De regresso ao Grande Ausitório, vimos os vídeos, sempre um momento alto no espectáculo. O primeiro, apresentado por Germano Guilherme (que saudades!) versava sobre a nova lei do tabagismo. Foi mais ou menos bem conseguido. O segundo vídeo foi um trailer de oito minutos sobre um putativo filme de terror (Sozinho), em que ficámos decepcionantemente sem saber quem era o assassino. Mesmo assim parabéns a Sérgio Perez que brilhou mais uma vez no departamento da realização.
A última parte foi um verdadeiro “tour de force”. O sketch era ambicioso: “Porta-porta di casaram” (Mansão de duas portas), que contava a história de dois arrendatários da mesma casa que tinha duas entradas por ruas diferentes – algo muito comum em Macau. Neste sketch Miguel Senna Fernandes mete a carne toda no assador: Rita Cabral, Sónia Palmer e a lindíssima Nair Cardoso no papel de uma família macaense, e o estreante Vitor Quintã e Ana Cardoso no papel de um casal luso-macaense, que deixou muito a desejar. Fátima Gomes brilhou no papel de uma mestre de feng-shui que estabeleceu contacto com uma alma do outro mundo, intepretada por Rui Carreiro. Deste último tenho a dizer o seguinte: é o melhor casting feito para o papel de vampiro ou alma penada, e nem precisava de maquilhagem. Só o sotaque micaelense já dava para assustar.
Ficou a saber a pouco, e foi provavelmente o trabalho menos bem conseguido desde “Sorti Doçi”, de 2008. Faltou o talento de alguns habitués, como Paula Carion ou Miguel Khan, relegados para os bastidores, ou de José Luís Pedruco Achiam, este ano completamente ausente. Passou-se alguma coisa? Vou voltar para o próximo ano, altura em que os Doçi celebram os 20 anos de representação. Miguel Senna Fernandes promete algo de “especial”. Mas sinto que qualquer coisa melhorzinha que a peça deste ano já seria mais que suficiente.