Acordei cedo esta manhã, e em vez de ficar em casa a engordar em frente ao PC resolve ir dar uma volta a pé. E nada melhor que deixar o carro na garagem e andar, andar, andar até onde 45 minutos ou uma hora nos levem. Neste caso foi até à zona norte da cidade. Passei por sítios por onde há muito tempo não passava a pé. Fui pelo Largo do Senado, Rua Pedro Nolasco da Silva, Av. Conselheiro Ferreira de Almeida e quase sem dar por isso estava na Praça do Tap Seac.
Esta Praça do Tap Seac tem muito que se lhe diga; um local tórrido, completamente aberto e com um túnel por onde passam viaturas. A ideia foi “dar mais um espaço verde” à população, e de facto existe ali um pouco de verde, no meio de tanto branco, preto, cinzento e castanho. No meio da Praça estão três estátuas de pedra deveras curiosas: um touro, um cavalo e outra que não consegui perceber o que é. Não é estranho que a Praça esteja completamente deserta a maioria das vezes. O calor que lá se faz sentir não é brincadeira nenhuma, e não existe um café, uma esplanada ou um restaurante onde se possa sentar ao fresco.
Chego mesmo a pensar se o antigo complexo desportivo da Caixa Escolar, como era conhecido, estava ali assim tão mal quanto isso. Era um sintético, mas sempre era mais verde. Depois tinha valor histórico. Milhares de jovens nasceram ali para o futebol, basquetebol e hóquei em campo. A última vez que Eusébio passou pelo território deu ali uns toques na bola, juntamente com Jaime Pacheco, Augusto Matine ou o saudoso Vítor Damas. O Hotel Estoril – hoje uma ruína sem sentido – um dos mais lindos hotéis do território, dava um colorido especial ao cenário. Hoje é tudo uma caricatura dum passado ainda mais ou menos recente.
Depois chego à Avenida Horta e Costa. Quando cheguei a Macau, a Horta e Costa era a segunda avenida mais importante do território, depois da Praia Grande (que era ainda apenas “rua”). Hoje não é nada. Foi na Horta e Costa que nasceu o segundo restaurante McDonald’s, depois da Rua do Campo. Existia ali um supermercado “Welcome” onde fazia compras pelo menos uma vez por semana. A importância da Av. Horta e Costa esbateu-se com o aparecimento dos novos arruamentos do NAPE, essa selva de concreto sem o mínimo de coração que “empurrou” a vida da cidade para os aterros a sul. E o Mercado Vermelho? Existe algum no NAPE?
Depois cheguei à Rua Pedro Coutinho. Quem está em Macau há mais de dez anos deve-se recordar concerteza do Pyretu’s Bar e do Talker Pub, duas paragens indispensáveis para começar a noite de Sexta e de Sábado enquanto se esperava que a discoteca da ala nova do Hotel Mondial (também saudosa) “aquecesse”. Eram noites loucas, aquelas, onde se conhecia gente, se faziam amizades. Existia outro colorido. Hoje está tudo confinado outra vez ao NAPE, como se não existisse mais nada. Tudo novo, tudo caro, sem alma e sem aquela luz amarela e as ruelas estreitas que existiam na Rua Pedro Coutinho.
Mesmo a música é outra, literalmente. Da música “indie” dos primórdios das rave parties e das passas que a malta dava por malandrice (e para rir…) passou-se à cultura da música electrónica, do trance, do ecstasy, da metanfetamina, das bebidas energéticas e da porcaria da ketamina. Tudo mais pesadão, bares com um look muito “ice”, muito “blue”, muitas “lava lamps”. Não me surpreende, pois para se gostar de certo tipo de música é preciso estar completamente alucinado.
Chegado à Av. Coronel Mesquita, passo pelo Caravelle Court. À minha direita está o Edifício Hoi Fu, e um pouco mais à frente o Sun Yick. Em tempos era um luxo morar nestes edifícios. Centenas de portugueses ali viviam, e uma renda não era nada barata naqueles tempos. Hoje estão cinzentões, descuidados, deprimidos. Era ali que a malta se encontrava antes de sair, na casa dos amigos. Comia-se bem, bebia-se melhor e a vida era mais barata e descontraída. Nem conheço ninguém hoje em dia que viva num desses edifícios. Os serviços públicos estão todos concentrados na Rua do Campo e arredores, ninguém quer viver ali, ninguém quer montar um negócio original, diferente, que valha mesmo a pena.
Cheguei à Av. Venceslau de Morais, e o cenário é desolador. Obras e escavadoras por toda a parte, passagens para peões completamente imperceptíveis, e mesmo as fábricas de vestuário que ali labutavam estão completamente em ruína. Vidros partidos, portões encerrados, pó e restos de plástico, pano e lixo. Não é preciso atravessar as Portas do Cerco para deparar com um cenário completamente diferente para pior. Aliás enquanto nos últimos anos a vizinha Zhuhai tornou-se mais nova, mais moderna e embelezada, a zona norte da cidade de Macau é que mais parece um cenário pós-nuclear, tal é o abandono a que está vetada.
Volto para casa praticamente pelo mesmo caminho, e sinto saudades. Ali onde já vivi não há nada, só restos. Apenas quem conheceu a Horta e Costa, a Pedro Coutinho ou a Venceslau de Morais sabe exactamente ao que me refiro. Toda a gente que dava vida a esta área de Macau mudou-se de armas e bagagens para a “cidade nova”. Foi hoje que me lembrei que antes de vir para Macau nunca tinha mudado de casa em toda a minha vida. Aqui já mudei quatro vezes. Será esse o segredo do imobiliário? Usar, explorar e depois deitar fora quando já não há nada para espremer. Hoje fui até à zona norte da cidade, procurar as minhas cinzas.