A batota é inerente à condição humana. Todos queremos, a um certo ponto das nossas vidas, tirar benefícios e contrapartidas. A verdadeira questão é: até quando e até que ponto? Podemos ficar simplesmente pelas caricas ou os cromos ou vamos até ao desfalque bancário e burla qualificada? A corrupção é um mal que mina a sociedade. Por vezes pior que o homicídio, pois pode destruír a vida de centenas ou mesmo milhares de pessoas, afectando-as directa ou indirectamente.
Mas ninguém é perfeito. Mesmo os países com os índices de percepção da corrupção mais lustrosos têm falhas. Esses tais índices nunca são um redondo zero. Onde quer que seja, há sempre alguém que não se importa de obter vantagens por meios ilícitos. Na nossa cultura mediterrânica é comum funcionarem expedientes como o “jeitinho”, o “favorzinho” ou a “mãozinha”. Toda a gente tem um “primo” aqui ou um “tio” ali (mal de quem não tem), mas pouco ou nada se fala de corrupção propriamente dita.
A palavra “corrupção”, assim crua e nua, traz à ideia algo de horrível, que envolve mafias, casas de passe, alternadeiras, talvez influências da malfadada corrupção desportiva. A corrupção é reservada para os grandes projectos, coisas de milhões, e são raros os casos onde se consegue provar concretamente que existiu realmente corrupção. Com uma definição tão restrictiva, surpreende-me que Portugal não esteja ao lado da Finlândia, Suécia ou Singapura nos tais índices de percepção.
Os portugueses, por outro lado, falam de corrupção como quem bebe um copo de água. Qualquer coisa injusta ou que lhes corre mal, a culpa é da corrupção. Crise? Desemprego? Falências fraudulentas? Corrupção. Fulano é podre de rico? Não foi a “trabalhar”, certamente. Porque “trabalhar, trabalhar trabalho eu, mas…”. É assim. Só pode ser corrupto. Portugal deve ser um dos poucos países onde se pode chamar "corrupto" a alguém "na brincadeira", ou apenas baseado em suspeições infundadas.
Nos países onde se sofre mesmo com a corrupção e onde não há “transparência” (palavrão que designa o antónimo de corrupção), ora na África ou na Ásia, as pessoas aprenderam a viver mais ou menos bem com a corrupção endémica que por lá grassa. Mesmo que os seus governos se digam empenhados no combate à corrupção, a população não acredita. Não existe uma fórmula mágica que resolva de uma vez por toda este mal. Mesmo só os estrangeiros mais “distraídos” não sabem que em países como as Filipinas ou Indonésia é tudo mais fácil se se tiver à disposição uma ou duas notas que lhes abram mais facilmente algumas portas, ou evitem sarilhos.
Aqui deste lado a corrupção é representada pela luva negra, pelas mãos que recebem dinheiro, por imagens de alguém tristonho e arrependido já atrás das grades. Cada vez que se fala do fenónemo da corrupção (um grande “problema”) discute-se o que é afinal corrupção. A versão do CCAC é bastante ampla. Qualquer gratuitidade (outro palavrão) é “não recomendável”. Em Macau funcionou durante sempre o princípio do “óleo que faz a máquina funcionar mais depressa”, e não eram raras as ofertas a funcionários públicos, ora em forma de prendas e
lai-si, quer no ano novo chinês ou no Natal, ou em troca de um trabalho bem feito.
O princípio que aqui se aplica pelos combatentes da corrupção é que o agente público "pode sentir-se tentado" a beneficiar o benemérito em detrimento de outrém, mesmo que não queira, inconscientemente. Isso é dar pouco crédito às pessoas. Em Macau é difícil habituar-se a ter-se cuidado com quem se janta, conversa ou bebe um copo. Não passa pela cabeça de ninguém que um empresário possa nutrir simpatia ou amizade por alguém porque está apenas interessado em tirar contrapartidas dessa amizade.
Depois o sector privado. Será dar demasiado poder ao Comissariado deixá-lo interferir no sector motor da economia do território? Será preciso passar recibo a quem receba uma gorjeta num casino? Sinto-me tentado a concordar com o deputado que afirmou que "existem certos mecanismos" no sector privado que vão para além da compreensão de quem entende por corrupção esses mesmos mecanismos. Parece uma boa ideia no início, tentar tornar a competição mais justa. Mas se for justa, será competição a doer?
A questão das penas a corruptos e corrompidos é também algo que me intriga. Acho que sim, que o corruptor activo é tão culpado quanto o passivo, mas e se o activo for aliciado pelo passivo? Em Macau existe uma grande fatia da população que ainda acredita que o dinheiro abre todas as portas. Não é de agora, e a culpa não é de ninguém em particular. Não será um pouco tarde demais para educar uma parte da população já de certa idade que não percebe que aquilo que dão por garantido funcionar apenas como interacção social pode ser considerado um crime?
E isso leva-me ao último ponto: a educação. Nos países que referi acima onde os índices de percepção da corrupção são os mais baixos, existe uma cultura implementada, uma abnegação dos princípios que levam à corrupção. Isto funcionou sem a repressão ou o castigo (sim, mesmo em Singapura). Foi uma educação no sentido de que se calhar as regras do jogo funcionam melhor com mais transparência. A repressão exagerada não funciona, e temos como exemplo próximos na região onde a corrupção chega a ser punida com prisão perpétua ou pena capital, sem resultados por aí além. A educação e a aposta numa geração seguinte que compreenda que se pode fazer jogo limpo, isso sim, é garantido.