
A primeira vez que atravessei a fronteira das Portas do Cerco foi em Dezembro de 1993. Um dia de compras em Zhuhai acompanhado pela mãe e por uma amiga chinesa do continente, com o aliciante de ser a minha primeira visita à República Popular. O que ficava na retina quando se saía de Macau era o imponente arco construído no século XIX e onde se lia: “A Pátria honrai, que a Pátria vos contempla”. Desconheço a autoria de tão inspirada frase, mas duvido que fosse Camões, Pessoa não era certamente e O’Neill não bate assim. Aliás o autor de “Há mar e mar, há ir e voltar” ainda não era nascido nascido na época. Seja como for, fosse eu um patrioteiro de gema e teria-me escorrido uma lágrima do canto do olho, como dizia o Bonga. Não me recordo bem dos procedimentos na saída de Macau, mas lembro-me como se fosse ontem da requisição de visto de entrada na China. Os vistos eram requisitados num pequeno escritório a caminho deGongbei, onde oficiais trajando uniformes folgados de pano verde tratavam os turistas com uma grande dose de arrogância. Depois de preenchidos os papéis e entregues os passaportes, estes eram deixados “a secar” por alguns instantes antes de validados e devolvidos – às vezes atirados – ao destinatário.
Já no outro lado, em Gongbei, era um mundo completamente diferente. O dia estava ensolarado, e na principal avenida depois da fronteira o comércio consistia de aparelhagens de som, produtos falsificados e demais lataria exposta através de uma rua pavimentada de gravilha onde funcionavam lojas cujos artigos eram facilmente negociáveis ao ponto da pechincha. Na altura a pataca era bem mais forte que o renminbi, e podiam-se obter ali mobílias, louças, tecidos ou objectos decorativos ao preço da uva mijona. O que mais me impressionou desta primeira visita foi a pobreza destas gentes, apenas dez anos passados da criação da Zona Económica Especial, idealizada por Deng Xiaoping. Era comum encontrar pedintes e prostitutas, e mesmo as mulheres que exerciam profissões consideradas dignas trajavam conjuntos que no total custariam cerca de 20 patacas, pelo câmbio de então. Almoçámos por lá, mesmo sem a certeza de ser uma opção segura, mas passados quase vinte anos aqui estou, pelo que valeu a pena arriscar.
Actualmente é completamente diferente passar a fronteira para o outro lado. O monumento que nos apela a “honrar a Pátria” mantem-se – por ser património, suponho – mas o posto fronteiriço é agora uma infra-estrutura moderna, funcional, preparada para dezenas de milhar de pessoas que vão e vêm diariamente. Sair de Macau é uma questão de minutos, e passar para Gongbei é igualmente rápido, com as excepções que já todos sabemos, do Ano Novo Chinês e das restantes “semanas douradas”. Mesmo a obtenção do visto, para quem não tem o salvo-conduto, já não é o que era. Os oficiais são muito mais expeditos e educados, uniformes bem mais catitas, e pasme-se, alguns falam inglês e tudo! E já não se atiram os passaportes nem se fazem caras de “mau”. Aliás é frequente deparar com pessoas a reclamar na alfândega com os oficiais chineses (e às vezes por bagatelas), algo que muitos não imaginariam ser possível. A imagem do oficial de alfândega chinês sofreu um “make-over” em termos de relações públicas, e não existe mais a imagem rígida e autoritária de quem controla a entrada num país fechado. A paciência e a simpatia são qualidades com que estas autoridades se dotaram nos últimos anos.
O desenvolvimento da própria cidade de Zhuhai é verdadeiramente espantoso. Longe vão os tempos das ruas de terra batida, é tudo muito mais modernizado, não faltam hotéis, restaurantes, cafés e outro comércio que satisfaçam as exigências mínimas, e a diferença em termos de limpeza salta à vista. A cidade vizinha tem agora a cara lavada, e foi mesmo considerada há pouco tempo uma das dez cidades mais românticas da China. A valorização do renminbi tornou a vida um pouco mais cara, mas ainda vale pena ir às compras e sentir a diferença. Tornou-se tão atractiva que muitos residentes da RAEM resolveram ir para lá viver, pois a habitação é muito mais em conta, e o tempo que demora a passar de um lado para o outro da fronteira não é impeditivo – chega a ser mais prático e rápido trabalhar em Macau e viver em Zhuhai do que trabalhar em Lisboa e viver na Amadora, por exemplo. Muitos dos noctívagos macaenses optam por ir ali “fazer a festa” e voltar à RAEM na manhã seguinte. A vida nocturna em Zhuhai granjeou uma certa fama, e além de mais barata as opções são mais variadas. E mais divertidas, dizem. Existem algumas arestas por limar, contudo; o simples facto de atravessar a rua é uma aventura (Macau também está diferente para pior neste aspecto), e há pequenos detalhes que ainda denunciam alguns vícios da velha China: a higiene nas casas-de-banho públicas, por exemplo ou alguma miséria ainda visível à luz do dia, para citar dois exemplos. No outro dia entrei lá numa padaria e junto dos “hot-dogs” estava uma placa onde se lia em inglês “german intestinal bread”. Assim não é tão convidativo. São pequenos detalhes, como já referi, e pouco a pouco se vai melhorando.
A fronteira funciona entre as 7 da manhã e a meia-noite, e fala-se da possibilidade de a manter aberta 24 horas por dia. É uma inevatibilidade, mais cedo ou mais tarde, até porque não implicaria um esforço significativo em termos logísticos e humanos. É apenas uma questão de vontade. Quando isto acontecer, a grande China ficará mais perto, e Macau arriscar-se-á a “perder” para Zhuhai em muitos aspectos. Quem viu há vinte anos aquela cidade que um dia Deng escolheu para Zona Económica Especial e olha para ela agora, percebe que ali se arregaçaram as mangas e foi feito um excelente trabalho. É muito mais limpo, bem mais seguro e nota-se uma grande vontade dos seus residentes em agradar. Os estrangeiros, especialmente, são recebidos com muita simpatia. Dá gosto visitar Zhuhai, e talvez dali pudessemos aprender qualquer coisa.