Artigo publicado na
edição de ontem no Hoje Macau, para quem ainda não leu.
Quando cheguei a Macau, e já lá vão uns bons vinte anos, fui acometido da maior das ingenuidades – pensava que pelo menos a maioria da população falava português. Afinal este ainda era um aquartelemento lusitano, o fim do famoso império português. Dissipada essa ilusão, acreditei que pelo menos os mais jovens falavam inglês. Puro engano. Andei um bocado perdido até aprender algumas palavras em chinês, nem que fosse apenas os nomes das comidas, de maneira a não morrer de fome. Em Macau falar uma língua estrangeira é privilégio de poucos. Apenas daqueles cujos pais investiram numa educação no estrangeiro, uma espécie de ratice que na cultura chinesa nem sempre é bem aceite. O mais importante é que os jovens aprendam quanto mais cedo possível o maior número de caracteres chineses, como se um futuro emprego dependesse disso. Não cabe na cabeça de ninguém minimamente civilizado este conceito: quanto melhor se sabe uma língua, mais acessível é o mercado de trabalho, ou que aprender mais que uma língua leva a que no fim não se consiga dominar nenhuma delas – outro preconceito utilizado como argumento.
Não surpreende que a Escola Portuguesa tenha encontrado tantas dificuldades nestes anos iniciais depois da fundação da RAEM, e tenha perdido tantos alunos desde a sua criação. Ninguém acreditou, ou investiu, no ensino em português. O conceito que vigorava era o mais básico que se possa imaginar: isto agora é a China, e quem não sabe falar chinês está “tramado”. Isto levou a que muitos macaenses – que estudaram no ensino corrente em língua portuguesa – inscrevessem os filhos em escolas chinesas, mesmo herdando os nomes portugueses dos pais. Um cenário demasiado pessimista, pois uma vez que foi garantida pelos executantes da transição que Macau manteria as suas características únicas. Abandonar a cultura ocidental, nomeadamente a portuguesa, era assinar uma sentença de morte e receber de braços abertos uma eventual integração no regaço do Continente. Isto seria fazer de Macau apenas uma extensão de Zhuhai, só que com mais vantagens, as tais consagradas na Lei Básica. Mas com tal passividade, até quando seria isso possível?
Não me incomoda que as pessoas se adaptem às novas circunstâncias, ou que se preparem para o futuro, se bem que ainda longínquo. Mas se queremos que Macau se mantenha dentro da sua originalidade, para quê cumprir sermões que nunca foram encomendados? Às vezes somos vergados pela batuta patriótica do “a China quer assim”, sem que a própria China nos tenha dado qualquer orientação nesse sentido. Algumas das decisões são feitas na base do chico-espertismo, da antecipação daquilo que agrada ao Governo Central. É por isso que Macau é sempre considerado o bom aluno desta coisa complicada que é o segundo sistema. É verdade que muito boa gente sofre dessa coisa que é o orgulho nacional, mas será mesmo assim? Será que os peitos-feitos que se consideram chineses acreditam no que lhes está a ser vendido?
Como dizia Goethe, “quem só conhece a sua própria língua, não conhece nem a sua língua”. E é sempre bom conhecer outra(s) língua(s), nem que seja apenas para encher a cabecinha de mais qualquer coisa. Aprender uma língua estrangeira implica ainda aprender outra cultura, descobrir coisas novas. É um facto que a nossa língua é também a nossa identidade, mas aprender outras não significa que a estamos a perder, ou a hipotecá-la. Não é verdade que é fundamental aprender mandarim para se poder entender com um chinês; ninguém deixa de fazer negócios ou de se entender, se isso for mesmo necessário, por causa da barreira linguística. É deprimente conhecer um jovem – chinês ou qualquer outro – que em pleno século XXI não tenha pelo menos umas noções de inglês, o que lhe facilitaria muito a vida numa ida ao estrangeiro, ou no contacto com gentes e culturas diferentes. É preciso soltar a língua, e sobretudo abrir essas cabecinhas e pôr lá dentro qualquer coisa que vai para além dos nossos próprios horizontes.
3 comentários:
"É preciso soltar a língua, e sobretudo abrir essas cabecinhas e pôr lá dentro qualquer coisa que vai para além dos nossos próprios horizontes."
Aí que está o problema desta triste gente de Macau.
Nem línguas, nem livros, nem História, nem política, nem geografia, nem cultura, nem arte, nem ciência nem nada de nada. Eu não vejo esta gente interessar-se por absolutamente nada para além do material e imediato. Qual é a telenovela a passar na TVB? Qual o ultimo modelo telemóvel da moda? Onde é que é o buffet onde se come mais por menos? Quando é que chega o chequezinho do Governo? Isso praticamente todos sabem.
Agora querer ter uma conversa um pouco mais aprofundada com algum espécime (especialmente jovem)? Então preparem-se para uma aventura pelo infinito da estupidez e ignorância que às vezes só dá vontade de rir à gargalhada (ou o inverso)!
Eu uma vez tive uma conversa com um moço de vinte e poucos anos nascido em Macau que estava admiradissimo quando lhe disse que o Natal não era mais do que a celebração do nascimento de Jesus. Achava que era um tipo carnaval qualquer para antecipar o ano novo onde o Pai Natal devia ser tipo o deus ocidental da fortuna, como os chineses também o têm no ano novo chinês.
Depois num rasgo de inteligência, ficou a compreender o que era afinal aquilo dum bebé a dormir nas palhas rodeado de animais que aparecia todos os anos exposto em várias partes da cidade!
Assim sã Macau...
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Ainda assim, uma terra que desperta paixões, caso contrário...
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