Tive a oportunidade de passar esta última consoada, além dos restantes elemetos da família Leocardo, com alguns amigos dos meus pais e tios. Entre eles o Sr. Viegas, ribetejano de gema, homem corpulento, de braços curtos, orelhas de abano e calvície evidente. O Sr. Viegas tem perto de 70 anos, eviuvou há dois, e tendo os filhos no estrangeiro veio "matar" a solidão connosco. Um homem à antiga, o Sr. Viegas. Bom conversador, educado, só come peixe cozido e bebe água Vitalis. Só que como não há bela sem senão, o sr. Viegas tem um defeito: veio de "baixo".
O que é vir de "baixo"? Muito boa gente que está bem na vida hoje, veio do nada. O Sr. Viegas trabalha desde os 12 anos, foi agricultor, tratador de cavalos, trabalhou como mecânico na Alemanha nos anos 60, um verdadeiro homem dos 7 instrumentos. Em meados dos anos 80 adquiriu umas terras, que cultivou, e outras que revendeu. Ficou rico. O mais chato de tudo isto é ter de ouvir o velho a gabar-se dos seus feitos. Não que eu tenha alguma coisa contra as pessoas que subiram a pulso, em tempos votados à pobreza, sem estudos, que praticamente sem saber ler nem escrever construíram um império.
O pior mesmo é ter de ouvi-los a botar defeitos em tudo. De como os jovens de hoje são "mandriões", que a televisão é uma "merda", que os profissionais das áreas da educação e cultura "não querem trabalhar", que os pobres são assim "porque querem" e de que todos deviam ter passado as passas do Algarve, como ele passou. É atroz ouvir a forma como o senhor tratava os filhos (que são oito, e por alguma razão preferiram passar o Natal a milhas do velho), de como no tempo da outra senhora "é que era bom", e sobretudo de ouvi-lo a criticar os mais pequenos por deixarem uma ou duas batatas no prato. Um autêntico Scrooge saído do conto de Dickens.
Já me faltava a paciência quando o ouvi a rosnar enquanto os miúdos abriam os DVD's do Wall-E ou os jogos de consola "inúteis" que recebiam de presente. Se calhar preferia que lhes oferecessem uma enxada ou então uma carga de porrada, como no tempo dele. A tampa quse me saltou quando criticou a minha tia por ter sido mãe depois dos 35 anos. Os julgamentos que fazia sobre as mulheres ou sobre a educação das crianças eram verdadeiramente patéticos, e levavam-me a pensar que alguém havia trocado a Vitalis por bagaço lá da terra. Ofereceu a toda a gente cachecóis, peúgas e cuecas, como que em jeito de comentário social de um tresloucado.
Pessoalmente não me queixo da vida que levo, que é boa. Não endeuzo quem "passou fome" e "trabalhou toda a vida", até porque quem me tira o tempo livre, tira-me tudo. O tempo não tem preço, e a vida é curta demais (tenho uma teoria de que me vou lembrar de estar a escrever isto agora quando tiver 60 anos, e parecer que foi ontem). Por alguma razão as biografias do que foram sempre ricos são sempre mais interessantes dos que vieram "de baixo". Os primeiros sempre tiveram coisas várias, enquanto os últimos tinham todos o mesmo nada. Isto para não falar dos que enriqueceram à conta de expedientes menos limpos, e mesmo assim são "respeitados".
Quem veio de "baixo" sofre inevitavelmente de dois defeitos: ou se esquece facilmente do fundo de onde veio, ou guarda rancor de quem teve uma vida mais facilitada. Nada tenho contra quem faz a sua opção, se quer esquecer por vergonha, por despeito ou porque simplesmente despreza quem continuou "por baixo". Ou porque talvez não tenha recebido uma educação que o leve a acreditar que por muitos que vejamos quando olhamos para "cima", encontramos muitos mais quando olhamos para "baixo". Talvez a lógica seja a mesma que é aplicada ao alpinismo: nunca olhar para baixo. O que mais me chateiam são mesmo os Srs. Viegas desta vida.
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