Conhecem o "teorema do macaco infinito"? A ideia pertence a T.H. Huxley, que no século XIX afirmava que o macaco seria capaz de escrever uma peça de Shakespeare. Bastava, para tal, que dispuséssemos de macacos infinitos aos quais pudéssemos confiar máquinas de escrever infinitas. Um dia eles acabariam por medrar qualquer coisa de sublime.
Andrew Keen regressa ao teorema de Huxley em livro que deu polémica nos EUA e foi agora editado entre nós pela Guerra & Paz. Intitula-se "O Culto do Amadorismo". O título, como se costuma dizer, é todo um programa: entregue à multidão ignara - à geração YouTube, à geração Blogspot, à geração Wikipédia; no fundo, aos "macacos infinitos" -, a Internet está a arrasar com o mérito intelectual e artístico; a promover a ignorância e a boçalidade em larga escala; e a cultivar um narcisismo repulsivo em que milhões de alienados usam a rede para exporem os seus delírios.
O problema, no fundo, está na ausência de filtro, capaz de separar a qualidade da mediocridade. Num jornal clássico, existe um editor; na televisão, existe um programador; nos meios de comunicação, existem profissionais que julgam e seleccionam. A Internet é uma selva epistemológica e moral que, acredita Keen, só será espaço frequentável quando os mecanismos de julgamento e selecção tradicionais forem exercidos por profissionais cibernéticos.
Entendo o argumento de Keen. Mas é difícil concordar com o tom alarmista do autor. A Internet é um caos? Sem dúvida. Mas por cada vídeo idiota no YouTube, existem preciosidades musicais, históricas ou até filosóficas que seriam impensáveis há uma década. A melhor forma de enfrentar o "culto do amador" está em procurar, nas famílias ou nos amigos, nos livros ou nas escolas, o profissional em nós. Porque somos nós o verdadeiro "filtro" cibernético; os editores pessoais da informação que procuramos e recusamos; os programadores privados das imagens que nos inspiram ou repugnam.
A Internet mata a cultura tradicional? Pelo contrário: a Internet exige-a como nunca.João Pereira Coutinho,
in Expresso
E pronto, como se já não bastasse vivermos numa sociedade em que cada vez mais se sabe e se quer saber do indivíduo, onde há câmaras nos parques, nos jardins, nas repartições, nos elevadores e nos supermercados, onde já é possível saber por onde cada indivíduo andou, onde e com quem esteve, os filmes que vê, os enlatados que consome, e onde só na retrete existe ainda alguma privacidade (será?), eis que cada vez mais aparecem estes advogados da censura, paladinos do bom gosto e senhores da verdade. Como este senhor Keen, que quase a chegar aos 50 anos, quer deixar a sua marca na Terra ao intrometer-se nas liberdades mais básicas dos outros.
Quem, mas ó quem, Deus meu, encosta uma pistola à cabeça destas pessoas e obriga-os a ver artigos mal escritos na Wikipedia, filmes patéticos no YouTube ou “descargas biliares” na blogosfera? O que os leva a considerar que o seu gosto é o melhor? Que tipo de autismo é este que os leva a pensar que têm o direito de falar da selecção das espécies, versão cibernética? De fazer uma carreira, escrever livros (sim, livros) a ensinar-nos o que é melhor, a propôr filtros, em nome da higiene de tudo o que se faz na internet?
Já sei que muita gente não gosta da minha habitual recomendação de “se não gosta, não venha”, mas o que mais posso dizer? Vir à blogosfera ler o que não gosta só pelo masoquista prazer de depois dizer que é mau, traz à memória a velha história do
peeping tom, sempre pronto a olhar para a Lady Godiva ou através do buraco de qualquer fechadura. Não posso deixar de concordar com o João Pereira Coutinho (que escreve muito bem, por sinal): deixem o sonho voar. E quem não gosta, não coma.
2 comentários:
Por fim a liberdade, e não a sanha mal fornicada dos filtradores, triunfará.
Abraço
PALAVROSSAVRVS REX
Se calhar o senhor Keen é que precisa que "os mecanismos de julgamento e selecção tradicionais sejam exercidos por profissionais cibernéticos". Esta gente que não é capaz de filtrar ela própria a informação que lhe interessa quer sempre por força impor esses "filtros" aos outros. E ainda ganham dinheiro a escrever teorias da treta, estes energúmenos.
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