segunda-feira, 6 de julho de 2015

Desconsolados no Consulado


Uma das notícias da semana passada foi a denúncia do deputado Pereira Coutinho de que existem portugueses que se sentem mal-tratados na condição de utentes do Consulado Geral de Portugal em Macau. A respeito dessa denúncia, feita numa entrevista que deu a um meio de comunicação social em Portugal, Isabel Castro dedica-lhe a segunda parte do seu artigo de opinião da última sexta-feira no Hoje Macau, que me chamou a atenção quanto a um aspecto ou outro, que achei bem fazer referência neste meu espaço que não sendo elitista nem politizado, não dará ao meu comentário uma projecção por aí além, que faça murchar as flores de algum jardim semeado de viçosas presunções e certezas absolutas. A certo ponto a jornalista de Macau diz que a entrevista de Pereira Coutinho saiu nas páginas de um jornal que ela "desconhecia", e "cujo nome não se recorda". Foi no Diário de Todos, o qual suponho que Isabel Castro terá qualquer coisa contra, ou não lhe reconhece legitimidade como meio de comunicação ao ponto de referir o seu nome. Digo isto porque além do tom sardónico com que faz um paralelo entre a imprensa local e a imprensa portuguesa (tricas cujos contornos desconheço e prefiro continuar desconhecedor), tenho a noção que esta profissional se rege pelos princípios do rigor, e procuraria saber o nome do jornal em vez de confessar que "desconhecia" da sua existência - poderia acrescentar esse detalhe contudo, e sendo ou não verdade, pouco importa.

É por experiência própria que falo, uma vez que aqui há uns tempos fui admoestado pela mesma pessoa por, segundo a própria, "lhe ter atribuído afirmações que não fez", nomeadamente a propósito de algo que teria dito no programa Contraponto, da TDM, a respeito do programa de rádio do canal Ou Mun transmitido todas as manhãs de segunda a sexta. Na altura posso ter sido impreciso, mas longe de ter a intenção de distorcer as suas palavras, e apesar de não me ter sido dada a oportunidade de esclarecer o incidente, permanece a convicção de que a falta de que me acusa só pode ser identificada como tal à luz de uma interpretação (muito) extensiva das minhas palavras. Posto isto, nada tenho contra a profissional em questão, que por seu lado me acha "demasiado radical". Como não considero "radical" um insulto, nem "ser radical" um crime de lesa-pátria (a não ser que se acrescente "islâmico" ou algo do género), não me atrasa, nem me adianta. Se este tipo de adjectivação serve para que por vezes alguém se escuse a fazer comentários sobre notícias ou artigos de opinião que saem na imprensa tradicional, então sou radical, sim - super-radical, se quiserem. Quanto à convicção de que com o aparecimento das redes sociais tornou-se "mais difícil" acreditar em tudo o que se lê, concordaria com essa perspectiva caso a imprensa revelasse uma isenção e uma honestidade imaculadas, mas na situação actual não me resta senão dizer "paciência".

Falando do que interessa. Sendo eu próprio funcionário público já há 22 anos e estando muitas vezes na posição de utente, gosto de pensar que tenho não uma vantagem, mas pelo menos uma perspectiva mais alargada de quem, por exemplo, nunca foi funcionário público. Antes de passar ao caso do Consulado Geral, gostava de falar da situação local, e sem querer generalizar, do serviço a que estou afecto - e aqui também sem querer estar a faltar com o meu dever de lealdade. O que tenho para dizer não é segredo para ninguém e suspeito que será a orientação comum a todos os serviços da RAEM, e as instruções que os funcionários da linha da frente recebem não deverão variar muito de serviço para serviço. Aqui vigora a velha máxima de "o cliente tem sempre razão", e os funcionários são instruídos no sentido de apaziguar qualquer tipo de conflito tendo sempre em conta este aspecto. Em alguns casos dá-se um cumprimento demasiado literal desta orientação, e por muito errado que o utente esteja, ao ponto de ultrapassar os limites não da relação que se estabelece neste âmbito, mas até a das regras do bom senso que deve existir nas relações pessoais, é preciso "vergar-se" perante o que em alguns casos chegam a ser demonstrações de arrogância, e mesmo faltas de respeito.

Nunca aconteceu comigo, mas assisti a situações em que colegas meus precisaram de pedir desculpa a indivíduos que chegaram a recorrer ao insulto gratuito, e com o uso de obscenidades graves. Eu NUNCA me retrairia numa situação deste tipo, pois ultrapassa o âmbito das minhas competências, e dá-me o direito de acusá-lo do crime de injúria. Admito que possa ceder perante um caso ou outro de teimosia, ou numa discussão repartida, nem que seja para não perder mais tempo com alguém que se calhar só está à procura de atenção, mas quem agride verbalmente perde toda a razão, e só chega a este ponto quem nunca teve razão desde o início. É um facto que os funcionários da linha da frente devem estar preparados para explicar aos utentes os procedimentos, as opções, e tudo isso, mas dá-se casos em que esses utentes esperam que o funcionário trate casos que não são da sua competência, ou que "adivinhe" as intenções ou a solução para determinado problema. Cheguei a ter um caso em que um utente me facultou informação errada, e após lhe chamar a atenção para esse facto, acusou-me de "não saber fazer o meu trabalho". Foi apenas graças à intervenção de outros colegas que não o fiz repetir exactamente isso mesmo junto das autoridades competentes. Funcionários e utentes são pessoas como outras quaisquer, e ninguém está numa posição de poder absoluto - esses têm mais que fazer do que lidar com egos inflamados - portanto respeito mútuo, com ambos cingidos apenas ao que os leva a dialogarem, é a solução ideal.

No papel de utente, e recorrendo a outros serviços públicos em Macau, noto que existe uma preocupação em agradar, parecer cordial e atencioso, e nota-se em alguns casos uma "coreografia" comum a todos os departamentos nesse sentido. Não tenho nada a apontar, pelo menos no essencial, mas dá para perceber que a preocupação com as aparências levou a deixar as competências técnicas para segundo plano, pelo que não é de todo impossível que alguém se desloque a um destes e não tenha o seu problema resolvido ou a sua dúvida esclarecida - mas será sempre tratado com a maior deferência. Em Portugal sinto exactamente o inverso, e não é à toa que foi esse o exemplo que Isabel Castro deu, o da repartição de finanças onde se sentiu menorizada, e que deve ser comum a outras um pouco por esse país fora. Tendo eu saído de Portugal com 18 anos, fiquei mal habituado, e não me consigo dar bem com a agressividade que tantas vezes encontro nos serviços em Portugal. No entanto compreendo que exista uma relação de causa-efeito: para cada funcionário "de trombas", nunca faltará um utente que chegue com duas pedras da mão, disposto a dar continuidade à velha percepção de que ali vai encontrar "burocracia e incompetência". Como a natureza humana funciona por vezes ao contrário do que devia, é mais provável que o lado bom passe para o mau, do que o mau se converta. No fundo, todos acabamos por encontrar alguém na vida que nos diz para "não confiar em ninguém" - com excepção dele, claro.

No caso do Consulado Geral de Portugal em Macau, há alguns factores especiais a ter em conta. Primeiro a natureza do próprio local, depois os seus funcionários, e finalmente os seus utentes. Enquanto que na grande maioria das repartições, quer em Macau quer em Portugal, o serviço tem a mesma importância para o utente, seja ele quem for, aqui na RAEM os serviços oferecidos pelo Consulado são encarados de uma perspectiva diversa pelos utentes, que por seu lado interpretam de forma igualmente diversa a atitude dos funcionários. Isto parece confuso mas torna-se mais simples analisando de um outro prisma, e para isso vou recorrer a um caso que assisti ao vivo e a cores em pleno Consulado. Aguardava a minha vez na fila para o levantamento do passaporte (não me recordo de quem e quando, mas terá sido há 6/7 anos) e vejo uma senhora de etnia chinesa a protestar com um dos funcionários sobre algo que não pude descortinar, uma vez que perdi o início da conversa. A certo ponto a queixosa faz uma comparação entre a forma como era atendida ali com outro departamento público em Macau - ou seja, davam-lhe razão independentemente de a ter ou não. O funcionário do Consulado respondeu simplesmente: "aqui é a representação diplomática portuguesa, e vigora a lei portuguesa". Certo, e quem discute? Nem dá para a começar a contrariar este argumento, perante a força que tem.

Mas não é tudo assim tão simples quanto "vai à fava, que aqui é Portugal", e é possível que tenham chegado de cima, ou do Ministério dos Negócios Estrangeiros, ou do próprio cônsul-geral, qualquer um dos quatro que por aqui passaram (duvido que do primeiro, contudo) directivas para que não fosse dado tratamento diferenciado a qualquer utente, seja qual a sua origem ou se domina ou não a língua portuguesa. Isto torna-se um problema, quando se dá tratamento idêntico a pessoas que são nitidamente diferentes (o comunismo também fracassou por esse mesmo motivo), pois enquanto há utentes que vêm tratar dos documentos por não terem outra escolha, há outros que vão por salvaguarda de interesses que podem não estar relacionados com a cidadania portuguesa de todo. Os portugueses de Portugal ou os macaenses, portugueses de Macau, por exemplo, são obrigados a renovar o documento de viagem, sob o risco de não poder sair do território de todo. Os de etnia chinesa vão por razões diversas, sendo essa talvez uma das menos tidas em conta; há os que vão por salvaguarda da nacionalidade portuguesa, que mesmo sendo cada vez menos, querem ter uma garantia que na eventualidade de precisarem de sair de Macau repentinamente podem fazê-lo, outros que vêem nesse documento vantagens para a obtenção de vistos, nomeadamente para os países da União Europeia, e pelo mesmo motivo os que pretendem estudar ou trabalhar temporariamente nesse espaço, sem necessitar de visto. Escusado será dizer que entre estes muito poucos têm ligações a Portugal, falam a nossa língua e mesmo em alguns casos desconhecem onde o nosso país fica.

Com tudo isto no tacho, vejamos que caldeirada vai sair. Um dos "ingredientes" que tem entrado no cozinhado tem sido o do "tratamento preferencial", acusação feita desde sempre pelos utentes chineses, mesmo que não se possam queixar junto das autoridades de Macau, pois falta a estas competência para agir - podem no entanto apresentar esta preocupação junto do cônsul-geral, e penso que é o que têm feito. A acusação fundamenta-se sobretudo no facto dos funcionários consulares serem de origem macaense, e alguns portugueses, que têm uma maior intimidade com a sua comunidade, portanto. Se isto é verdade ou não, depende do que se entende por "tratamento preferencial". Há o simples "compadrio", que passa por deixar alguém passar à frente em circunstâncias idênticas à de outros utentes, e destes penso que nunca tive conhecimento de nenhum. Vamos usar aqui o senso-comum: quem tem mais urgência em renovar o documento de viagem, alguém que vai viajar no mês seguinte, ou alguém que quer guardar o passaporte na gaveta "pelo sim, pelo não"? Julgo que é uma pergunta retórica esta. Mas se por um lado há os utentes de etnia chinesa que acreditam na tese do "favorecimento" e se resignam ao facto, há outros que puxam dessa carta sempre que não sejam tratados de forma privilegiada, ou que assistam a uma situação em que outro o é, sendo a urgência um factor completamente irrelevante para o caso.

O caso que se passou comigo há um ano e meio serve para ilustrar tudo isto. Fui ao Consulado renovar o passaporte, já com viagem marcada mas com o passaporte a menos de seis meses do prazo de caducidade, o que não me permitiria obter o visto do país para onde viajava. Consciente do sistema de senhas, limitadas a dez por dia (entretanto melhorado, e só podia ser), fui para a fila do consulado uma hora antes da abertura, e mesmo assim já não consegui uma das tais senhas. Achei que quer o sistema, quer o próprio atendimento era bastante deficitário, e tudo o que foi dito em voz alta na frente dos restantes utentes foi que "tentasse noutro dia". Perante esta situação, e colocando de fora a possibilidade de pernoitar à porta do local nessa noite, fiquei perplexo, quando subitamente, e  quase em surdina, fui abordado uma das funcionárias, que me disse para vir resolver a minha situação nessa mesma tarde, fora dos olhares fiscalizadores dos restantes utentes. Parece que talvez em alguns casos os portugueses "mal tratados" o tenham sido por uma questão de aparências, ou neste caso de manter as mesmas.

A verdade é que seja no Consulado, onde vigora a lei portuguesa, quer noutro sítio qualquer em Macau, os locais só lá vão se daí obtiverem alguma vantagem, ou caso contrário, "tempo é dinheiro"  - e se há algo que eles adoram acima de tudo mais, é o dinheiro. Por isso fica um pouco difícil de entender a intenção do actual cônsul apelou a que "todos se recenseassem" com vista às próximas eleições legislativas em Portugal, onde os votos Macau contam para o círculo fora da Europa. Isto levaria a que um grosso destes cidadãos nacionais que não sabem nada sobre Portugal fossem precisar de aprender, e além disso convencê-los de que votar traria qualquer utilidade para as suas vidas -  e deste aspecto já nem os restantes conseguem convencer, quanto mais. E é deste ponto de vista que vos falo, pois tanto a finalidade do deputado Pereira Coutinho pode ter a ver com a genuína preocupação que os utentes lesados lhe transmitiram, ou pode ter lá metido o dedo acastanhado da política. Não sei, ficam aqui os factos, o leitor que decida.


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