domingo, 5 de outubro de 2014

Saudações à República (espreitando aqui ao lado)



Estávamos no Verão de 1991, ou 1992, não me recordo ao certo, e estava eu no meu emprego de férias na Imprensa Nacional Casa da Moeda. Todos os dias apanhava o autocarro da Apelação até Entre-Campos, e daí até à D. Filipa de Vilhena. Para o efeito, adquiri o passe tipo L1, que na altura permitia-me circular na zona da Grande Lisboa, e chegava para os gastos, portanto. Um dia o meu "chefe" pediu-me que fosse buscar algum material na Alameda D. Afonso Henriques, e deu-me dinheiro para a passagem. Disse-lhe então que não era necessário, pois tinha o passe, mas ele insistiu, reiterando que "o passe era meu, e para meu uso pessoal", e fez-me aceitar o dinheiro, que na prática foi direitinho para o meu bolso. Há quem possa estar a pensar que eu estava a ser "anjinho" - e estava, e na verdade eu ERA anjinho - mas por outro lado o passe estava pago desde o início do mês, permitia-me apanhar qualquer transporte dentro da área designada sem limite de vezes, e aquele dinheiro que entrava no meu bolso vinha direitinho do erário público, e indirectamente do bolso dos contribuintes, e poderia muito bem ser economizado em vez de desbaratado em "bejecas" e "matrecos", e para mais eu estava dentro do meu horário de serviço. Por outro lado, tecnicamente o meu chefe tinha razão. Atenção: tecnicamente. Isto pode parecer que não tem qualquer relação com o tema que vou desenvolver a seguir, mas se tiverem paciência para ler tudo até lá abaixo, vão verificar que na realidade tem tudo a ver. (E porra, queria contar esta história, pode ser?).

Isto tudo para dizer o quê? Ah sim, hoje (era "hoje", Domingo, quando comecei a escrever este artigo mas agora são nove e meia da noite de segunda, mas alguns artigos são como os carapaus fritos com açorda de tomate: sabem melhor de um dia para o outro) a República Portuguesa comemora 114 anos, uma idade respeitável, mas ainda longe da maturidade desejável. Não porque o cineasta Manoel de Oliveira que "os homens atingem o pleno da maturidade e da sapiência aos 105 anos, e as mulheres apenas muito mais tarde, na maior parte dos casos lá para os 130", e tratando-se a República de uma senhora, deve ser esse o caso. Sim, temos uma república com mais de cem anos de História, mas coitada, parece saída de um daqueles dramas que ficamos a conhecer durante o enfadonho processo Casa Pia há coisa de mais ou menos dez anos. Foi mal tratada, pontapeada, abusada, molestada até à idade maior, institucionalizada depois disso durante uma boa parte da sua vida - o martírio de Mandela é uma brincadeira comparado com a suspensão das funções vitais a que foi sujeita a nossa república/democracia. Quando finalmente lhe foi dada rédea solta, era já sexagenária, coitadita, via e ouvia mal, os joelhos não a deixavam manter-se de pé durante muito tempo e ainda menos lhe permitiam carregar ao colo todos os "bebés" que de Abril brotaram, e que se foram (e vão) aproveitando da velhinha para lhe "gamar" uns trocos quando ela não está a olhar ou "ir-lhe às bolachas" quando adormece em frente ao televisor enquanto vê a novela. E isto com toda aquela experiência que já vem do tempo das divisões entre absolutistas e liberais. Pois é, foi a partir daí que andamos, como o meu bom povo costuma dizer, a "trabalhar para chulos".

E olhando para o estado lastimável da nossa República, toda remendada, coxa, zarolha, a coitadinha, que entendo o preço que se paga pela democracia. Pronto, é isto, achamos que o nosso vizinho é uma besta por pensar de maneira diferente de nós, mas reconhecemos-lhe esse direito, e o sentimento é recíproco. No entanto cada um dos dois teria um certo gozo em ver o outro "na merda", aquilo que os alemães designam de "schadenfraude" - prazer na desgraça alheia. Mas aí está, são anos e anos de aceitação da diferença que nos levam a não deixar sebo nas escadas à hora que o tipo sai de casa. Temos portanto o que se chama "cultura democrática", algo que custa a adquirir, que não se compra na farmácia nem se encontra nas prateleiras dos supermercados. Da democracia diz-se tanta coisa engraçada: o pior dos sistemas com excepção de todos os outros; satisfazer a vontade da maioria causando o menor dano possível, etc., etc. A democracia não é um sistema perfeito, mas é sem dúvida o menos imperfeito - é impossível ter 100% de opiniões favoráveis sobre seja o que for. Mesmo em relação a algo que pareça perfeitamente legítimo, como a extinção do golfinho azul. Parece razoável, mas há quem implique com o bicho, e pronto, está no seu direito. Imaginem que há até quem ache que não devia existir democracia, e use essa democracia para fazer prevalecer essa ideia: "Vamos votar: quem é a favor de que não devia existir democracia? A maioria? Porreiro. Gostaram de ter votado desta vez? É que não vai haver outra...".

É por isso que me arrepio cada vez que oiço esta malta daqui falar de "democracia", entoando a palavra alto e bom som, em jeito de desafio, como se fosse um grito de rebeldia. Pois, pois, soubessem os antigos pensadores atenienses que um par de milénios depois de cunharem o conceito estariam a pôr uma outra civilização milenar em apuros, se calhar tinham era ficado quietinhos a comer os seus figos, ou quem sabe canalizavam as suas energias para as outras ciências em que eram exímios, casos da aritmética, ou especialmente da filosofia, a arte de falar muito sem dizer nada. Democracia não, é perigoso. Devia vir encaixotada com todos aqueles avisos "da pesada", com etiquetas onde se lê "tóxico", "inflamável", "proibido fumar" ou "manter afastado das crianças". O movimento "Occupy Central", que tem vindo a, ora, ocupar Central, ou coração financeiro de Hong Kong durante a última semana e picos, tem o seu quê de peculiar, no que ao conceito de "democracia" diz respeito. É realmente genial que para que se exija democracia, uma ambição legítima, se arrase com o sistema, e a partir daí se reconstrua, com os pilares da democracia a sustentar a nova estrutura social. O problema é que não se sabe muito bem se essa estrutura aguenta com o peso daquilo a que se propõe sustentar, ou se realmente quer sustentar seja o que for.

Antes de entrar no campo da argumentação propriamente dita no que toca a esta problemática da paralisação de Hong Kong, gostaria em primeiro lugar de deixar claro que toda a gente tem direito à sua opinião, e se isso passa por protestar por protestar, sem saber muito bem porquê ou com que fim, que seja. Reconheço a todo o cidadão maior e vacinado o direito ao livre arbítrio, nem que isso signifique besuntar-se de mel para depois ir saltitar numa floresta de ursos famintos. Se isto de assumir uma posição contra um regime totalitarista conhecido por ser pouco tolerante a actos de dissenção é encarado como um "desporto radical", seria muito mais interessante se fosse praticado noutro local onde não fosse permitido. É um pouco como o trapézio com rede ou sem rede, estão a ver? O desempenho dos acrobatas até pode ser idêntico num e noutro caso, mas tem muito mais piada sem rede. É porque reparem: o tal "elevado grau de autonomia" que Macau e Hong Kong usufruem é um caso sério. Sabiam que os tipos na China estão roídos de inveja e isso preocupa seriamente o regime? No continente estes meninos do "Occupy Central" nem podiam ir juntos aos pares à casa-de-banho, quanto mais. E reparem que eu até simpatizo com esta malta do campo da pró-democracia, e vocês sabem bem disso. Dão imenso jeito num regime totalitário "especial" como é a RAEM para fiscalizar o Governo, para lhe "morder os calcanhares" e não deixá-los ir além das medidas. Agora quando mete o poder...vejamos.

Agora parece evidente que este movimento do "Occupy Central" começa a eclipar-se; teve o seu auge durante os feriados da "semana dourada", muito bem, sim senhor, um Woodstock "of sorts" que foi uma mina de ouro para as audiências dos canais de televisão. Posto isto é hora de voltar a bulir, como é? Quem paga as continhas? Enquanto estive na Tailândia estes dias troquei impressões um professor de Economia, um senhor chinês de Singapura que (diz que) leccionou nos Estados Unidos, e comentei as implicações que esta acção teria na Economia, ao que ele acrescentou "...de Hong Kong". Depois referi as eventuais perdas, o desinvestimento, todos os problemas inerentes, ao que voltou a terminar a minha frase com "...para Hong Kong". E de facto é assim mesmo: a China não precisa do dinheiro de Hong Kong e é para que estes de "desenrasquem" nesse sentido que também lhes é conferido o tal "elevado grau" de autonomia. O que procura então este "Occupy Central"? Demitir C.Y. Leung? Entra outro igual ou parecido. Sufrágio universal parece que conseguiram, agora exigem livre escolha nos candidatos. Porreiro, e isto é o que os próprios chineses chamam de "tak chun chon chek" (得寸进尺), literalmente "ter uma polegada e querer um pé" ("pé" no sentido da medida imperial de comprimento, entenda-se), ou na versão portuguesa, "darem-lhes um dedo e quererem a mão inteira".

É que realisticamente, o que preocupa mais a China é que o movimento transborde para dentro do continente e vá "contagiar" regiões problemáticas, como o Tibete e Xinjiang, e é só aí que o regime levanta a guarda. Isto leva-nos ao tal receio de que poderá acontecer "outro Tiananmen" em Hong Kong. Bem, não será de todo garantido que eventualmente em caso de inflexibilidade extrema dos manifestantes não se recorra à violência, mas duvido. Reparem que desde 1989 muita coisa mudou; em 1989 ninguém comprava um rádio a pilhas feito na China, hoje compra-se tudo, quer queiramos, quer não; em 1989 mandar alguém à China era quase o mesmo que mandá-lo à merda, e hoje os investidores e as multinacionais salivam que nem cães famintos perante a perspectiva de entrar no mercado chinês; em 1989 tudo o que se sabia da China no Ocidente era visível apenas nos restaurantes chineses (ou na sede do MRPP), e hoje anda meia Europa a aprender Mandarim. Portanto não interessa nem à China nem a ninguém "outro Tiananmen", e disso Benny Tai y sus muchachos sabem muito bem, daí toda aquela "bravura". Podem continuar a zunir à vontade em Hong Kong, estes mosquitos, mas atrevam-se a fazê-lo do lado de lá e têm um encontro imediato com a sola de um sapato.

E depois é lógico que o Chefe do Executivo de Hong Kong terá que ser sempre alguém que se possa sentar à mesma mesa que os mandarins. Candidatos livres? Quem, o "long hair", que é um palerma que se diz contra um regime totalitário e autoritário de ideologia marxista-leninista mas depois ostenta camisolas e outra parafernália com a estampa do Che Guevara? E quando depois Hong Kong precisar da China, como é que essegajo vai entrar no Politburo, ou no Palácio do Povo, ou sentar o rabiosque na Assembleia Nacional Popular? E quando se encontrar com Xi Jinping ou as altas individualidades do PC chinês? Desata aos urros e a berrar "democracy" e leva para lá gaiolas de pássaros e o restante equipamento com que executa a sua pantomínia no LegCo? Sim, eu sei, não precisa de ser necessariamente o "long-hair", mas penso que estão a perceber onde eu quero chegar. É simples: Hong Kong e Macau são regiões administrativas ESPECIAIS, atenção, ESPECIAIS, e DA, ênfase no DA R.P. China. Portanto em última instância, a R.P. China exerce soberania sobre estas regiões. Isto ficou expresso nas declarações conjuntas assinadas pelas partes que negociaram a entrega destes territórios, ficou preto no branco, e na altura ninguém foi ocupar Central nem o raio que o parta. Tenham lá um bocadinho de juízo, quer dizer, defendo a existência destas forças como um contraponto, um equilíbrio. Não como um grupo de anarco-terroristas.

Quando cheguei em Macau em 1993 tinha 18 anos, e era um curioso, um "idealista" se quiserem, e interessava-me por "coisas" (eh, eh). Notei quase de imediato que aqui em Macau existia uma espécie de "deserto político", e nesse aspecto o que se via nesse sentido era uma pequena guerrilha entre os "chuchas" e os "laranjinhas", enfim, a gente sabe como é, mas localmente encaixava na perfeição o termo anglo-saxónico "it's the economy, stupid!": desde que a malta andasse contente e com a carteira bem composta, "mou man tai". Foi aquilo que Deng tão filosoficamente explanou no seu "não importa se o gato é preto ou branco, desde que apanhe o rato". Alguém quer saber se o raio do gato é comunista ou democrata?> Daí que o tal partido "comunista" na China serviu (e ainda vai servindo) na hora de se apropriar do território nacional e das empresas, e passaram a ser conhecidos por "o poder" - e a partir deste ponto pouco importa que fossem comunistas, testemunhas de Jeová ou anões de circo: eram "o poder". Quem se opõe ao poder são...bem, "os outros", neste caso os "democratas" porque esse é um nome que chateia os "comunistas". Era como se duas equipas do Wrestlemania fossem a combate e se baptizassem uns de "Bombeiros" e os outros de "Incendiários", ou "Mosquinhas" e "Shelltox".

É que numa tal "democracia" onde se realizam "eleições livres" existem "alternativas", e cada uma propõe "um rumo". Aqui não temos um centro-centro, um centro inclinado para um lado ou um centro inclinado para o outro, um PNR, uma ETA ou uma UNITA - temos os gajos que detêm o poder, e os outros que querem o poder para eles. É que na eventualidade de uma hipotética queda do regime, com os tais "democratas" a ficarem com o poder, acham mesmo que eles iam realizar eleições? Contra quem, eles mesmos ou os tipos com que acabaram de correr? Era como se subitamente a Espanha resolvesse devolver Olivença aos portugueses mas mesmo assim "travar uma guerrazita", só para "tornar a coisa mais formal". O pior é que o tal Benny Tai e os suspeitos do costume que organizam estas tropas fandangas, Martin Lee, Anson Chan & Cia. Lda. vão ficar com a população a olhá-losd de soslaio quando se esgotar a razão de ser deste "Occupy Central"; a malta quer ir tratar da vidinha, portanto toca a desmontar a tenda e levar o circo para outro lado. Não querendo tomar o partido de C.Y. Leung, não posso deixar de concordar com as suas palavras proferidas no último Sábado: este grupo não representa os sete milhões de honconguenses.

Portanto, meus amigos, é bom bater com o pé de vez em quando, nem que seja para ver se estes gajos do Governo se mexem e fazem o trabalho para o qual foram nomeados, interessa lá por quem ou o quê, e deixam-se de merdas, a comprar casas na Austrália e no Canadá, ou a mandarem os filhos "estudar" nos Estados Unidos para ir "arrepiando caminho" caso qualquer coisa dê para o torto, e no processo irem engordando as contas bancárias, abrir firmas em "offshores" como as Ilhas Virgens Britânicas e esses truques e tricas que até cego já viu. Agora falar de democracia? Há democracias e há democracias, meus amigos. A Índia é uma "democracia", ou será que não sabiam? Isso tem que ser muito bem pensado, testado, repensado e testado outra vez. A democracia não vai "chegar" às farmácias e aos supermercados, como referi mais acima, nem distribuída pelo como os cheques da tal compensação pecuniária. Vejam como nada é assim tão simples quanto parece, e agora remoto-vos ao exemplo do primeiro parágrafo, o tal do passe e do dinheiro para o transporte. Vão pensando melhor no assunto, e o melhor e não voltarem pelo menos nos próximos vinte ou trinta anos. Mas não se envergonhem por querer sonhar, pois afinal o sonho comnda a vida. Mas é um sonho, e a vida está lá fora e é preciso ir à luta. Nas palavras de Mao (para acabar em estilo): "uma revolução não é uma jantarada", e se não enche a barriga a ninguém, muito menos uma não-revolução como esta a que agora assistimos em Hong Kong.

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