sexta-feira, 24 de outubro de 2014

A honra, ora a honra...



Estes últimos dois ou três dias tive a oportunidade de observar (e rir com) algumas "trocas de galhardetes" nas redes sociais entre elementos da nossa "tribo" lusófona, por norma pessoas de bem, cada um na sua, mas sempre atenta ao picador alheio no seu lombo sensível. Que maldade a minha, vejam só, e que indivíduo mal formado eu sou, a tentar desunir a nossa comunidade. Tivesse eu uma nota de mil por cada vez que ouvi ou li isto, e punha os anjinhos no Céu todos ao estalo uns nos outros, e assim podia ser tambem que juntasse a fama ao proveito. Nas tais redes sociais, a arena onde decorrem estes combates ideológicos, os gladiadores estão armados apenas com o tridente da ironia, a espada do escárnio, e a rede do sarcasmo. A estratégia pode variar conforme a preparação, experiência ou astúcia do gladiador, mas a cada golpe corresponde a réplica, que aqui vem sempre na forma de um delicoce eufemismo a que chamam de "direito a resposta". Quando se fala do "direito" a algo, a coisa adquire logo uma seriedade que antes não tinha, mesmo sem que fosse esta a intenção inicial (é por isso que tanta gente diz "ter direito" a tudo e mais alguma coisa quando na realidade não tem assim tantos direitos quanto isso) e se neste caso tratando-se de uma discussão, acesa, a média luz ou apenas ténue, o entusiasmo pode levar a que se perca a controlo, e se entre pela via do insulto, e mais grave do que isso, que se produzam afirmações "a quente", que sendo graves, menos graves ou um simples desabafo, são muitas vezes difíceis de provar, ou até falsas, e tendo ficado escritas e registadas, podem constituir matéria para procedimento judicial.

Neste âmbito temos no Titulo I da parte II do Código Penal, "Crimes contra a pessoa", o capítulo VI, que abrange o que se chama de "Crimes contra a honra". Entre estes estão os crimes de difamação (Artigo 174.º) e de injúria (Artigo 175.º-177.º), cuja discriminação visa defender a nossa reputação e bom nome de acusações ou actos que nos são imputados por outrém, por meio verbal, escrito ou por outra forma de expressão, diferenciando-se a difamação pela publicidade dos mesmos, ou seja, pela divulgação na presença de terceiros. Portanto, se o que estão agora a pensar é: "posso ter que responder perante a justiça se chamar alguém de palhaço? Ou apenas de palerma?". Depende, mas sim, é possível, e vou mais longe: caso mandem a alguém um SMS dizendo a essa pessoa que a "vão matar" ou "partir-lhe a cara", mesmo na brincadeira ou noutro contexto que não aquele que a mensagem sugere, isso pode valer-vos um processo-crime por ameaça (Artigo 147.º). Isso mesmo. Claro que tudo depende com quem estão a lidar e em que circunstâncias ocorrem os factos, e apesar do palavrão "crime" que estas acusações implicam, dificilmente acarretarão consigo uma pena de prisão efectiva, mas podem valer uma multa avultada acompanhada de mancha no registo criminal. É preciso nunca esquecer que estamos em Macau, e o melhor é evitar este tipo de confrontação com gente que conhecemos mal ou que tem fama de filho da puta. Mas o que acontece quando estas figuras jurídicas são transportadas para o exercício de uma liberdade individual ou de uma actividade profissional, casos da liberdade de expressão ou a liberdade de imprensa. Aí somos remetidos para o campo das sensibilidades, que como se pode perceber desde logo, é bastante subjectivo.

Eu tenho como pressuposto que a justiça deve servir um fim nobre, e que deve ser apenas usada em situações onde não existe uma outra via para que se resolva um diferendo, ou onde existam dúvidas sobre a legalidade de um procedimento, ou ainda em questões relacionadas com a interpretação ou a aplicação da lei, mas tudo em casos concretos, ou de carácter técnico-teórico. No caso dos crimes privados é lógico que se deve aplicar "strictum sensum" em situações onde exista uma parte pesada, ou possa vir a dar-se algum prejuízo considerável. No que toca aos crimes contra a honra, existem duas formas de encarar a gravidade dos mesmos: grave e mesquinho. Tudo o que se diz ou escreve é inserido num determinado contexto ou situação, depende da forma como foi expresso, com recurso a figuras de estilo ou/e dentro de um conteúdo humorístico ou satírico, ou pode ser apenas uma parte de um raciocínio mais elaborado, ou seja, nunca se deve interpretar literalmente seja o que for, a não ser que a intenção fosse, acima de qualquer dúvida, colocar em causa a cidadania da pessoa atingida, do receptor. Numa sociedade que queremos livre e onde não exista o medo de expressar uma opinião ou transmitir uma ideia, temos que elevar a tolerância ao patamar da liberdade em causa, e não limitar essa liberdade tendo em atenção os seus limites. Para se estar a pensar sempre duas vezes antes de falar, mais vale ficar calado. É uma sociedade de mudos que queremos, e onde o uso da palavra dependa de autorização prévia, ou seja um exclusivo de quem está apoiado pelo poder?

Antes de passar aos exemplos, vamos colocar ambas as liberdades, quer a de expressão, quer a de imprensa, no mesmo patamar, e assim escusamos de diferenciar injúria de difamação, de modo a centrar mais o tema no que pode ser considerado ofensivo ou o lesivo para a honra e para o bom nome de alguém. Vamos ter também em conta que todas as afirmações que poderão ser apresentadas como prova são obtidas por métodos legais, e dirigidos directamente a pessoa concreta, seja ela individual ou colectiva. Há casos flagrantes que penso não terem discussão possível, como imputar a alguém um crime, uma conduta criminosa ou moralmente reprovável, ou a prática de um ilícito no exercício da sua profissão ou de um dever que lhe foi incumbido, ou ainda que mexa com a sua vida familiar e íntima, ou lese o seu direito à privacidade. Afirmar num jornal, blogue, televisão ou outro meio audio-visual que A. é corrupto, por exemplo, é um caso flagrante de difamação, e pouco importa a veracidade dos factos; a ser verdade, existem os meios apropriados para que seja feita uma denúncia, e tornar este facto é lesivo do direito à presunção da inocência do visado. Revelar que A. é adúltero ou que é traído pela esposa, ou vice-versa, ou sugerir deixando ser passível de tratar de uma verdade que B. é homossexual, consumidor de substâncias ilícitas, alcoólico ou portador de uma tara ou doença mental, é nos dois primeiros casos devassa da vida privada, e nos restantes ofensivo à honra e ao bom nome do visado - isto se não se assumir como tal, ou não forem factos tornados públicos, é claro. Os crimes privados dependem da queixa do ofendido, e aqui entra o factor da subjectividade dos crimes contra a honra.

O caso Ao Man Long, por exemplo, ficou marcado por uma polémica que levantou a discussão da sobreposição do interesse público ao procedimento judicial, quando foram divulgados na imprensa factos sobre o processo que em circunstâncias normais estariam em segredo de justiça. Este é sem dúvida um exemplo extremo da dificuldade que existe em encontrar um equilíbrio entre aquilo que se pode tornar público, pois aqui tinhamos num dos pratos da balança o direito do indivíduo à presenção da inocência, e do outro a opinião pública e a própria imagem do Executivo, ultimamente responsável pela conduta do secretário. Mas pegando em casos mais simples onde por vezes é colocada em causa a honra, temos o exemplo daquilo que eu faço: expressar a minha opinião. Identificado um texto como sendo de opinião, fica-se a coberto de uma série de protecções que uma notícia não tem; não existe o dever da precisão ou da veracidade dos factos, mas há cuidados a exercer quando se faz referência a alguém ou algo, neste caso uma pessoa colectiva ou uma entidade pública, por exemplo. Posso afirmar que "A. é incompetente" a cobro da liberdade de opinião, mas caso A. sinta que estou a pôr em causa o seu bom nome, pode-me pedir esclarecimentos, e caso eu não tenha qualquer motivo para o ter ofendido na sua honra, posso vir a ter problemas. Agora se conseguir apontar uma conduta que seja que considere danosa , nem que seja apenas para mim mesmo, e que lhe possa ser imputada, nada feito - é a minha opinião, não estou obrigado a justificá-la. Sugerir que alguém é homossexual por exibir um comportamento efeminado, por exemplo, não é o mesmo que afirmar que alguém é de facto homossexual. Tive o exemplo do personagem Filipe, dos meus filmes, que corresponde a esta descrição, e escutei comentários nesse sentido, no entanto não me sinto melindrado nem reconheço uma intenção de quem faça esse juízo de me ofender ou atingir a honra.

Mas nisto da opinião há que exercer certas cautelas. No caso de insinuar que certa conduta é ilegal ou criminosa e nesse contexto inserir o nome de alguém, pode-se abrir a porta a um precedente perigoso; levando uma situação deste tipo à barra dos tribunais e dando-se razão ao autor, pode-se dar o caso de serem permitidas os maiores atentados e para branqueá-los basta escrever no canto da página ou no subtítulo do artigo a palavra "opinião". Na eventualidade de ser dar razão à parte ofendida, pode acontecer o extremo de não ser mais possível incluir o nome de qualquer pessoa singular ou colectiva num texto onde se descreva uma situação passível de ser associada com esse nome - mesmo que em polos opostos desse texto. No exercício da opinião pessoal há ainda que usar o senso comum, especialmente na hora de detectar uma figura de estilo, como uma metáfora ou uma antítese, hipérbole ou simile. Comparar por exemplo uma reunião ou uma assembleia que tenha decorrido de forma atribulada ou desordeira a um "circo" parece perfeitamente legítimo, mas caso não existam razões para tal, pode ser entendido como uma provocação, e depois tudo depende de quem e do que está em causa. É também sensato identificar se estamos na presença de uma sátira, ou de uma simples rábula. Um texto que contenha elementos do fantástico, do sobrenatural ou qualquer coisa que nunca poderia ser interpretado como verídico ou que tenha de facto ocorrido dispensa mesmo que se indique previa ou posteriormente tratar-se de ficção - a não ser que pelo meio se façam asserções que remetam para algum caso concreto, facto ou acontecimento real, e aqui convém não ter uma imaginação muito fértil, ou fazer leituras abusivas, identificando intenções que não foram de todo expressas.

E aqui entramos no tal campo das "sensibilidades", e aqui pesam vários factores, desde o sentido de humor, a relação do potencial ofendido com o autor, os antecedentes, as circunstâncias, a intenção, muita coisa. Um árbitro que cometa um erro grave durante um jogo de futebol não vai certamente dar-se ao trabalho de processar todos os que lhe chamem "ladrão" num momento que é facilmente tido como sensível, e que seja passível de produzir declarações "a quente". O caso muda de figura se no dia seguinte essa ousadia for cometida por um jornal desportivo, que normalmente usaria um eufemismo para se referir ao erro do árbitro: "a arbitragem cometeu um erro que teve influência no resultado", no máximo. Chamar de "palhaço" ou "corno" a alguém durante uma troca de insultos ou uma briga de rua ou de café não é o mesmo que fazê-lo na televisão, ou caso haja alguém demasiado púdico que processe quem lhe tenha chamado de "chimpanzé" arrisca-se a uma discussão sobre a sua aparência ou comportamento, que podem ou não assemelhar-se à de um primata. Com toda a certeza uma afirmação desta natureza poderá levar alguém a pensar que o visado é de facto um chimpanzé. Para concluir, vou dar um exemplo de um caso que muitos de nós aqui em Macau certamente se lembra, quando um professor universitário escreveu no seu blogue que um aluno era "cretino e mal formado", sem especificar quem em concreto. O visado, sentindo que existiriam mais pessoas que o identificariam com aquela descrição. O caso foi resolvido (mal, a meu ver) pela própria instituição de ensino, mas demonstra o perigo que pode representar uma acusação desta natureza, e é aqui que se testam os limites da liberdade de expressão. Se eu escrever "o meu vizinho é um palerma", tendo eu mais que um vizinho, estou no meu pleno direito, mesmo que o indivíduo saiba que estou a falar dele, e que os restantes vizinhos tenham conhecimento desse facto. Não se tratando aqui da imputação de um facto grave ou uma ofensa à sua dignidade, devassa da vida privada ou íntima, tem um bom remédio: responder pela mesma moeda.

É preciso não esquecer que não foi assim há tanto tempo que a honra era lavada em muitos casos com recurso a duelos de pistola ou de espada, e ainda bem que hoje temos os tribunais para resolver os casos mais graves.No entanto há que ter o bom senso de não levar atritos sem importância ao terreiro da justiça, em muitos casos para resolver questões pessoais que não são interesse geral nem servem nenhum princípio válido. Há quem se iniba de avançar simplesmente por querer manter uma imagem de pessoa tolerante e democrática, mas tem o direito de exigir que não se ponha causa a sua dignidade ou integridade, e certamente terá o apoio da opinião pública caso esteja com a razão do seu lado. Num outro extremo temos quem sinta o mínimo "toque", e tendo os meios a seu dispôr para levar às barras dos tribunais um caso ou casos que possam ser resolvidos com diálogo ou cavalheirismo, está a perverter o sentido da justiça, atrasando outros processos com o volume do seu ego, e ao mesmo tempo deixando em cheque esses valores que tanto estimamos, que são a liberdade de expressão e de imprensa. Bom senso recomenda-se, e já agora que os magistrados usem sempre o critério que coloca um direito sempre acima de um dever, quando se trata de um simples diz-que-disse, e tenha em conta que a opinião pública tem o discernimento de distinguir o certo do errado.

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