terça-feira, 21 de outubro de 2014

Édito positivo, é sempre bem feito



Tenho por vezes o hábito de praticar algo que para muitos é considerado "mau", que é aquilo a que chamam de "comentar os comentários". Ora, mas isso é o que toda a gente faz, não é? Ou será a opinião de cada um o seu castelo, e se for esse o caso, para quê divulgá-la? Ou será que as opiniões estão seladas, lacradas e fechadas ao cadeado e não são passíveis de refutação? Se a liberdade deixa as palavras voarem ao vento, é bem possível que venham parar ao meu quintal, e posso escolher varrê-las com as folhas e mandá-las para o lixo, ou levá-las para dentro, e nesse caso tenho ainda a opção de lhes dar uso que achar mais conveniente, ou não? Serão as opiniões exclusivas do seu autor, e como tal protegidas ao abrigo da lei? É que assim desconfio que as duas que pretendo agora analisar já foram feitas por outros, ou pelo menos existe uma forte semelhança, o que já por si é prova da existência de plágio. Bem, entendidos ou nem por isso, vamos ao que interessa. Dois artigos na imprensa em língua portuguesa de Macau merecem a meu ver que se façam algumas observações. Tratando-se de editoriais assinados pelos respectivos directores do jornal em que são publicados, que desde já saúdo, podia exercer o meu direito ao contraditório escrevendo para os mesmos jornais, mas prefiro fazê-lo aqui, que assim só cá vem quem quer, e não é obrigado a deparar com as minhas diatribes enquanto faz as suas leituras de eleição.

O primeiro artigo é do Hoje Macau, da autoria de Carlos Morais José e tem o título de Perigosa Brincadeira, tendo como tema o Festival da Lusofonia, que como se sabe realizou-se até ao último Domingo. Há quem não saiba e confunda o Festival da Lusofonia com o arraial que se realiza entre sexta-feira e Domingo no Largo do Carmo, na Taipa, na zona das casas-museu, mas a realidade é esta: o Festival confunde-se com o arraial e quem ouve falar do primeiro associa imediatamente ao segundo e tudo o que isso acarreta, desde as "jolas" às bifanas, das caipirinhas aos matraquilhos e pelo meio dar um abraço à malta e "ver passar os chineses", citando o autor. Para o director do Hoje isto é "uma desgraça", e por "desgraça" faço uma interpretação simpática de outros epítetos do tipo "palhaçada", "vergonha" ou "humilhação", com a desvalorização do papel histórico de Portugal no que é agora a RAEM, reduzindo-nos a meros saloios, baterias apontadas ao IACM, e o papel de cúmplice para quem aderiu, caindo que nem um patinho no conto do tuga pândego e beberrão.

Pronto, agora que ele já nos deu porrada, vamos ver se saímos disto vivos, pelo menos, e com alguma sorte sem as pernas e os braços partidos. Sem dúvida que Portugal e a herança cultural deixada pelos nossos antepassados é muito mais do que o arraial e de tudo o que CMJ referiu algures pelo meio da artilharia pesada com que arrasou o Festival da Lusofonia. Não vou cometer o atrevimento de chamar a este seu raciocínio desonestidade intelectual simples (nem chega a ser qualificada) pois reconheço como pode ser até uma forma de ginástica mental bastante agradável, querem ver: "mas mostrar o quê afinal? qual ciência, qual cultura e qual história? o melhor é ficar mesmo pelo arraial porque se nos pomos com conversa de chacha ainda vão pensar que queremos que nos comprem a dívida". Estao a ver como é fácil? Mas pronto, independentemente de quem está aqui a tentar ser mais cínico, noto no discurso de CMJ alguma sinceridade, e entendo que alguém como ele, que tanto tem feito pela divulgação da língua e da cultura portuguesa sinta alguma frustração ao ver tudo resumido a um simples arraial. Tudo bem, mas e depois?

Este é um vício antigo que nós temos e que face às características do local onde nos encontramos pode ser isso sim, uma "brincadeira perigosa": portanto, não é assim que se faz bem as coisas, o melhor era não fazer nada. E ainda acabamos por engolir essas palavras, que por estas bandas existe uma tendência para complicar o que é aparentemente simples em alguns casos, e noutros fazer interpretações literais do segundo sentido que se dá às coisas. Haja vontade para levar a cabo tudo e mais alguma coisa que diga respeito à Lusofonia, e pronto, foi tudo uma maravilha, não entremos nessa discussão, mas que mal tem o arraial? É preciso não esquecer que a China não se pela de amores pela glorificação de uma potência estrangeira dentro do seu território, mesmo que seja apenas do seu passado, e que a intenção seja compreender melhor o próprio contexto de onde nos inserimos. O arraial pode não ter o mesmo impacto que a literatura ou a música, mas ainda deixa passar qualquer coisa, dá umas pistas. Das vezes que lá vou com pessoas que não sabem nada sobre Portugal, denoto sempre um misto de surpresa e de respeito quando tomam conhecimento da nossa epopeia expansionista. Para consumo local, para uma população que não aprende a cadeira de Filosofia no secundário e não é estimulada a pensar, um arraial pode servir como aperitivo, e se estiverem interessados podem ir tentar saber mais.

E quanto à natureza rústica do arraial propriamente dito, não entendo o desatino. Portugal é muita coisa e de tudo o que entra na caldeirada o arraial é mais um ingrediente, e não é nada de vergonhoso ou humilhante, tipo romagem a algum santuário para prestar homenagem a criminosos de guerra. Todos os povos têm o seu lado brega, e para isso basta ter um passado; os alemães têm o Oktoberfest, os austríacos têm os tiroleses, e reparem como o príncipe Carlos usa um "kilt" (vulgo saia) em certas cerimónias oficiais - não se pense que achou que lhe ficava bem com o chapéu e resolveu sair assim de casa nesse dia. Acho que é mais fácil para mim ser português e digerir um arraial ou outro aspecto cultural mais populucho do que se fosse turco e tivesse que brigar na lama semi-nu com outro homem em nome da "tradição". E mais: é verdade, estamos na China! O melhor é ficar por aí, que podia entusiasmar-me e ser desagradável. Já agora, juntemos a isto o facto de não ser nada producente andar constantemente a rebaixar o que se tem, apenas para lamentar o que não se tem.

E na mesma tónica que nos leva a tabelar as coisas por baixo, mas com uma mensagem ligeiramente diferente ,do tipo "mesmo que não seja óptimo ou sequer bom, é melhor que nada", temos o editorial de Sérgio Terra no Jornal Tribuna de Macau. Em primeiro lugar saudações ao autor, que no fundo não diz nenhuma mentira, mas deixa-me meio desconfiado, como quem olha pela janela e vê um linda dia de sol mas instistem para que saia de casa com o guarda-chuva. Com o título Não vale tudo, o editorial tem um papel vincadamente didático, ao estilo do "modo de usar" que lemos nas parte de trás de certos medicamentos ou outras coisas que não temos por hábito comprar, como armadilhas para os ratos e baratas, mas aplicado a um direito fundamental, neste caso o da liberdade de expressão. Não entendo o teor de artigo de outra forma que não o de uma eventual réplica em Macau do movimento "Occupy Central", esse engodo que vai para a lista dos "case-studies" regionais que nos deixam saber mais um pouco sobre o que vai na cabeça desta gente. Mas neste caso eu acho que é mais prejudicial do que benéfico levantar esta questão, e explico já porquê.

Uma das diferenças que notei entre a administração portuguesa e a actual após 1999 foi a mudança na forma como se encaram os direitos, mormente como e em que circunstâncias podemos activá-los em nossa defesa ou proveito. Quem tem contacto com a máquina burocrática ou não consegue evitar ser também uma peça dessa mesma máquina repara certamente que a forma com que os chineses entendem a justiça é pelo lado preventivo: é melhor prevenir do que deixar acontecer e depois decidir se há ou não infracção da parte do agente. No caso de Macau esta opção terá sido feita mais com receio de não conseguir dar resposta a certas situações que requerem mais experiência ou que obrigam a uma sustentação de base literária, reflexão com recurso a consultas diversas oiu a analogias de casos idênticos, enfim, tudo o que requer tempo e se puxe pela cabeça. Isto leva a que se negue o acesso a diversas valências, que mesmo não tendo importância no que toca ao exercício das liberdades, limitam os movimentos e podem dificultar o cumprimento de certas tarefas, e se há algo em que estes tipos têm muita imaginação é na dedução que fazem de certas atitudes ou comportamentos - e ainda justificam isto com uma falsa preocupação, em nome da nossa "protecção e segurança". Enfim, uma tristeza. E foi mesmo a parte em que o Sérgio Terra fala de "segurança" que me deixa a entender que o subjacente é uma hipotética imitação das manifestações que deixaram Hong Kong em suspenso durante as últimas semanas.

Não acredito que em Macau se vá em frente com uma iniciativa semelhante à de Hong Kong, e por duas razões: primeiro porque não produziu o efeito desejado, e não fazia sentido importá-la para aqui, e segundo porque os democratas, por muitos defeitos que tenham, têm a virtude de aprender com os erros. Agora os outros, bem, para bom entendedor, etc.. No entanto reconheço-lhes o direito de se manifestarem, tanto a eles quanto a outra pessoa qualquer, e nem se põe a questão de ser dentro dos limites da lei - qualquer um sabe disso. O pior é o que se entende por "limites", e ali o director do JTM toca na ferida ao mencionar duas palavras que podem querer dizer mil coisas: "segurança" e "caprichos". Ainda penso que vivemos num ambiente de respeito pelo primado da lei, mas depois desse teste à eficácia do sistema e à competência das autoridades que foi o referendo civil, passei a desconfiar um pouco. Quer dizer, é improvável que a polícia vá andar atrás de avózinhas, virgens e outra gente insuspeita, mas fiquei com a ideia de que se pode deter alguém, mantê-lo na esquadra um dia inteiro e depois mandá-lo para casa sem dar explicações de espécie alguma, e tudo em nome da "segurança". Quanto a isto dos caprichos, é claro que não basta dizer que não se gostou do que alguém disse para agir judicialmente contra essa pessoa, mas há portas e travessas por onde se pode lá chegar. Se somos amantes da liberdade e defensores de uma lei igual para todos, é preciso encarar o Direito na sua vertente positiva: sentir que estamos seguros, conscientes dos deveres, mas sem estar olhar por cima do ombro com receio de nos faltar o chão onde por os pés, com medo de errar ou ser induzido em erro. E é só, obrigado, e desculpem qualquer coisinha.

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