sábado, 31 de agosto de 2013

Compressa? Devagarinho até lhe dou duas...


A questão do acesso aos cuidados de saúde em Macau é um espinho encravado na pata da população ainda desde o tempo da administração portuguesa. Bem sabemos que ninguém é bruxo, e não se previa tão grande défice em termos de qualidade dos serviços prestados, tanto no âmbito do público, como do privado, mas esta foi uma “zona cinzenta” que deixamos por colorir com tons mais vivos quando partimos em 19 de Dezembro de 1999. O sistema de saúde gratuito, universal e de qualidade em Macau é uma miragem. É pena, pois num território onde a liquidez não é um problema deviamos estar a respirar saúde, com médicos para todos, equipamento de primeira e uma celeridade exemplar nas áreas da prevenção, diagnóstico e tratamento. Mas longe disso, e mais uma vez, é pena.

O hospital público, o mais que saturado Centro Hospitalar Conde S. Januário (CHCSJ) foi notícia esta semana mais uma vez pelos piores motivos. Uma parturiente que deu à luz naquele hospital expeliu pela vagina as compressas usadas durante o parto, depois de se ter queixado de dores e dificuldades em urinar. Recorreu aos serviços do hospital, onde não foi encontrada a razão das suas queixas, e viria depois a denunciar o caso na imprensa. Mais um que me provoca um pouco de desconforto, depois de alguns anos outra parturiente ter ficado a “defecar pela vagina”, depois dos médicos do CHCSJ lhe terem trocado as voltas dos orifícios na hora de lhe coser os pontos.

A queixosa expressou a sua desilusão com o hospital público nas redes sociais, nomeadamente o Facebook, e deixou uma expressão curiosa: “Do Kiang Wu sai-se sem dinheiro, do São Januário sai-se sem vida”. Já tinha ouvido isto antes. A comunidade chinesa vem dizendo há alguns anos com algum humor que “no Kiang Wu estão os ladrões e no S. Januário os assassinos”. Ah ah ah! Já riram tudo? E que tal fazer algo para mudar este estado de coisas? Ou basta desabafar poeticamente que uns roubam e os outros matam, como num descargo de consciência, e fica o peito menos pesado?

Quanto ao S. Januário, tenho ouvido falar bem e tenho ouvido do piorio, e penso que tudo tem a ver com a gravidade da situação. Quem ali se desloca com marcação prévia com vista a um procedimento de rotina que não coloque em perigo a sua vida, fica normalmente satisfeito com o atendimento. Na realidade o problema do CHCSJ não tem a ver tanto com os recursos ou com a qualidade do pessoal que dispõe, mas antes com o que faz falta e leva a que não consigam dar vazão às inúmeras ocorrências. A população aumentou exponencialmente nos últimos dez anos, e o hospital é ainda o mesmo de há 20 ou 30.

O calcanhar de aquiles será o serviço de urgências, onde uma gripe mais persistente obriga os utentes a esperar por vezes meio dia desde o registo até à saída, após completar o processo de consulta, diagnóstico e medicação. Há quem diga que o tempo de espera, exposto à flora bacteriana e viral da sala da espera, faz com que se contraíam maleitas além da que motivou a ida à urgência. O único jeito de ser atendido com rapidez é no caso de se chegar com as tripas de fora ou com a cabeça pendurada no pescoço por um tendão – passo o exagero. Muitos são os casos em que a urgência não aparenta a necessidade de atendimento imediato, e mais tarde se vêm revelar de gravidade extrema. De facto é impossível distinguir uma simples diarreia de uma hemorragia interna a olho nu, mas os casos de negligência têm sido tantos que abalam a credibilidade do serviço público de saúde.

Como alternativa existe o Hospital Kiang Wu, que em tempos remotos era simplesmente conhecido como “hospital china” – tempos em que o hospital público era conhecido pela sua excelência. Actualmente torna-se muito mais prático acorrer ao Kiang Wu para tratar uma simples gripe ou outros males passageiros. Por qualquer coisa como 200 patacas e mais uns trocos é-se atendido em menos de uma hora, e vai-se para casa com a medicação e eventualmente o atestado médico. O pior é que nos casos que vão além da simples gripe há a tendência para exarcebar a gravidade dos sintomas, que depois requerem “exames mais completos” ou até um ou dois dias de internamento , com um preçário que vai muito além das tais 200 e tal patacas. Daí o epíteto de “ladrões”, se bem que com tantos “cuidados” desnecessários, as possibilidades de cometer actos negligentes são nitidamente menores que no caso do hospital público.

O Kiang Wu tem beneficiado nos últimos anos de grande investimento em termos de infra-estruturas, pessoal médico e auxiliar, bem como de equipamento. A isto não é estranho o facto de um dos maiores investidores no hospital privado ser o próprio Chefe do Executivo, Chui Sai On, e a sua família, que encabeça a direcção da Associação de Beneficência do Hospital Kiang Wu. “Beneficência” aqui é usada de uma forma bastante livre, claro. Uma das aquisições mais recentes é uma ala reservada aos cuidados paleativos, baptizada com o nome do milionário honconguense Henry Fok, que terá patrocinado a sua construção. Esta estrutura assemelha-se mais a um hotel de cinco estrelas do que um local triste para onde os doentes terminais vão esperar a chegada da morte, e com um preço a condizer com a qualidade. Perante estes factos, como se pode esperar que a nomenclatura invista no serviço público em deterimento dos seus interesses privados?

Enquanto uns vão matando e os outros esfolando (os bolsos), quem paga as favas é a população, que anseia pelo acesso à saúde como em qualquer lugar do mundo considerado "normal". Os mais endinheirados optam por Hong Kong, e ironicamente assumo que os próprios medicos da RAEM consultam-se na RAE vizinha quando necessitam de tratar da saudinha. Os mais vivaços vão até Bangkok, onde se situa o tal hospital-hotel onde se realizam todos os exams necessários em um ou dois dias, em condições de conforto impossíveis de encontrar em Macau. Por cá, quem não tem outra opção só lhe restam duas soluções: coveiros ou ladrões. E dessas venha o Diabo e escolha.

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