domingo, 13 de janeiro de 2013

O filho eterno


O escritor brasileiro Cristóvão Tezza passou por Macau em Novembro último, e foi à UMAC falar do seu livro “O Filho Eterno”, de 2008, que fala da sua experiência como pai de uma criança mongolóide. Não fui à conferência, mas comprei o livro, que acabei agora de ler, e fiquei perplexo. Adorei a obra deste autor que desconhecia por completo. Tezza escreve bastante bem, tem uma bilbiografia respeitável, e ganhou vários prémios, incluíndo o prémio Portugal Telecom de 2008 com este livro, que se lê muito bem e que nem a norma brasileira causa estraheza ao leitor português. “O Filho Eterno” é escrito num português escorreito e vernáculo, e nem alguns brasileirismos, como a trema no “u” em palavras como “sequência” e “frequente”, ou a palavra “cartum” (desenho animado, do inglês “cartoon”) que demorei alguns segundos a perceber o sentido tornam o livro menos acessível no mundo lusófono.

Começo por abordar um aspecto que referi acima, o do “filho mongolóide”. Esta palavra, mongolóide, é forte, e fere os afectados com o síndroma de Down e suas famílias. Como o próprio autor refere várias vezes durante a obra, é uma palavra que custa ouvir, e custa muito mais dizer. Como o livro explica, a designação de “mongoloidismo” foi atribuída pelo facto dos indivíduos oferecerem semelhanças físicas com o povo mongol, da Ásia distante. A palavra foi conotada com um sentido pejorativo, e é comum ser utilizada na forma de insulto – um indivíduo de raciocínio lento, mesmo que casual, é chamado de “mongolóide”. Eu próprio rejeito este preconceito. Chamar “mongolóide” a um indivíduo estúpido não ofende os mongolóides da mesma forma que chamar “cego” a uma pessoa curta de vistas ou “surdo” a alguém que é duro de ouvido não ofende a cidadania dos deficientes visuais ou auditivos. Tudo depende do contexto. Além disso não existe uma designação politicamente correcta para esta deficiência, e como tudo tem um nome, “indivíduo com síndroma de Down” não é um nome, é uma frase inteira. Uma das alternativas passa pela origem da condição, causada pela presença de um terceiro cromossoma do tipo 21: “trissómico”. Não penso que esta designação seja mais ou menos ofensiva que “mongolóide”, mas já que ficamos a saber que o jovem se chama Felipe, vou tratá-lo simplesmente pelo seu nome, sempre que possível.

O síndroma de Down é a anomalia genética mais comum entre os humanos. As crianças mongolóides distinguem-se por traços particulares. O atraso no crescimento e a retardação mental são os mais evidentes, atingindo quase 100% dos casos. Outros traços físicos incluem as mãos e o pescoço curtos, os dentes pequenos, a genitália atrofiada, a língua larga, os músculos flácidos, as articulações maleáveis, o palato oval, o nariz achatado, a hérnia umbilical, as orelhas arredondadas, a visão curta, e em muitos casos estrabismo e pigmentação diversa da iris. Uma criança mongolóide é um pequeno monstro, por muito que nos custe adjectivar desta forma um ser humano como nós.

Estas anormalidades podem ser facilmente detectadas entre as 10 e as 13 semanas de gestação do feto, e de acordo com estatísticas datadas de 2002, entre 91 a 93 gravidezes em cada cem foram interrompidas no Reino Unido depois de detectada a trissomia. Realmente não vale a pena trazer uma criança a este mundo para sofrer sem alívio possível. A retardação mental, dificuldades de aprendizagem e desarticulação da fala são os aspectos mais difíceis de ocultar. A média de QI de um mongolóide é de 50, e na melhor das hipóteses, com muito empenho, chegará aos 70. Pode-se treinar um mongolóide para ser funcional, mas mais ou menos da mesma forma que se treina um chimpanzé ou um cão de fila a obedecer a estímulos ou rotinas ensaiadas. Podem ser considerados “espertos”, mas nunca inteligentes. Uma criança mongolóide terá no limite entre 50 e 60% da inteligência de uma criança normal, com estimulação apropriada. Isto vale por dizer que na melhor das hipóteses o pai de um filho mongolóide terá apenas meio filho, ou pouco mais de metade, em termos cognitivos e de funcionalidade motor.

Existem outras trissomias conhecidas, monossomias ou corrupções cromossómicas variadas. A maioria destas resultam em aborto espontâneo, e outras na morte da criança poucas semanas ou meses depois do nascimento. Todas são raras, incidindo na ordem de um para milhares, e o próprio síndroma de Down é uma hipótese remota. Esta complexidade da genética chega a ser uma autêntica lotaria, analogia aliás utilizada por Tezza para explicar as probabilidades do que aconteceu com o seu primogénito. Todas estas anomalias são detectáveis, e o autor explica a certa altura a decisão de não realizar testes mais conclusivos. Em última análise, não lhe passava pela cabeça ser contemplado nesta tal “lotaria” da genética. Era tão improvável que nem se colocou essa hipótese.

Uma das razões que me levou a ler este livro foi a curiosidade quanto à reacção de um pai confrontado com a condição do seu filho recém-nascido. Adorei a sinceridade de Tezza, que culpou o mundo inteiro menos ele próprio, desde a mulher aos médicos, a Deus, à sorte, enquanto completamente desorientado pela sombra e pelo peso de um fardo que iria carregar durante anos. Chegou mesmo a encontrar algum conforto em saber que as crianças mongolóides têm uma curta expectativa de vida, e imaginava-se dois ou três anos depois, no funeral do seu filho, debaixo de uma linda árvore, abraços de pêsames e depois disso um regresso à normalidade que parecia tão distante naquele momento. É difícil julgar um pai que se confronta com uma realidade tão cruel.

O autor é ao mesmo tempo o narrador, e refere-se a si próprio como “ele”. Além dos autores que compõem a formação literária de Tezza, apenas Felipe é referido pelo nome próprio. A sua mulher é “a mulher”, os restantes familiares designados pelo grau de parentesco, os amigos são simplesmente “amigos”, e por aí fora. Tezza aceitou o desafio e encarou a realidade, aceitou o Felipe como seu filho e não olhou a sacrifícios para lhe dar uma vida normal, mesmo com a consciência de que isso seria impossível. O livro é ao mesmo tempo um guia para outros pais de crianças mongolóides, e acima de tudo um testemunho importante. Não existem situações completamente incontornáveis, e apesar do esforço ser muitas vezes em vão, o essencial é que se cumpre a função de pai, que é a de amar, proteger e querer apenas o melhor para os seus filhos.

O livro é sobre mais do que a angústia do autor em educar uma criança inadaptada. É uma semi-auto-biografia, que nos leva à adolescência de Tezza, durante o período mais intenso da ditadura militar que vigorou no Brasil até meados dos anos 80, a sua vinda para Coimbra como estudante nos tempos do PREC em Portugal, em 1975, o tempo que passou na Alemanha a fazer trabalho braçal, culminando com o atribulado início da sua vida de escritor e académico. O autor e a mulher têm mais tarde uma filha, esta normal, o que lhes garante algum equilíbrio e estabilidade familiar que os permite continuar a lutar lado a lado. No final a redempção, o final feliz, que é simultaneamente o tempo presente. Como já disse, não fui à conferência de Cristóvão Tezza na UMAC, mas depois de ler “O Filho Eterno” arranjava tempo para ir lá ouvi-lo e dar-lhe um abraço. E já agora pedia-lhe que me autografasse o livro.

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