domingo, 6 de janeiro de 2013

O (bolo) rei vai nu


Comemora-se hoje o Dia de Reis, doze dias depois do Natal no calendário cristão. É neste dia que tradicionalmente os espanhóis abrem as prendas, e a data coincide algumas vezes com o Natal do calendário ortodoxo. Foi no Dia de Reis que alegadamente o Menino Jesus recebeu a visita de três reis magos do Oriente, que o presentearam com ouro, incenso e mirra. Já esmiucei a teoria dos reis magos neste artigo, publicado no dia 25, e não me resta senão assinalar esta data como a que está convencionada à chegada dos visitantes do recém-nascido Messias, quer se acredite ou não.

Este dia não é feriado, e é pena. A malta gosta de feriados, e mais um não caía mal. Além disso este Dia de Reis assinala o fim da quadra natalícia, o que significa que é dia de desmontar a árvore de Natal e o presépio, e regressar-se à normalidade. Agora Natal outra vez só daqui a 344 dias. Parece muito mas vão ver como chegamos lá num ápice. Este dia comemora-se de forma menos entusiástica que o Natal, mas há quem siga os preceitos, dê um jantar de família e cumpra a tradição, decorando a mesa com as romãs e o indispensável Bolo-rei. Era desta pastelaria tão especial que gostava de falar hoje. Este post é sobre o Bolo-rei. Antes de continuar a ler, vá buscar um copinho de licor para ajudar a empurrar.

A origem do Bolo-rei é misteriosa. O meu professor de Religião e Moral, o pe. Manuel Gonçalves, contou-nos que os tais reis magos traziam no seu bornal farinha, açucar, ovos, fruta e frutos secos que “ficaram todos misturados com a viagem”. Quando se preparavam para deitar tudo fora, a virgem Maria (sim, ela mesma) sugeriu que fizessem um bolo com aquela amálgama. Assim foi só encontrar uma padaria que estivesse aberta em Belém àquela hora, e nasceu o Bolo-rei. O padre Manuel era uma óptima pessoa, e adorava contar-nos histórias mirabolantes que dessem um colorido mais vivo à fé que nos tentava transmitir. Um homem tão bom que se facilmente se perdoa o facto de ser tão mentiroso. Que Deus, se realmente existir, o guarde. Mas agora a sério, desconheço a verdadeira origem do Bolo-rei. Este artigo do Jornal das Caldas apresenta outra teoria, igualmente descabida.

Em Portugal o Bolo-rei é presença habitual em qualquer mesa que se preze durante a quadra festiva, e torna-se a estrela da companhia no Dia de Reis. Esta tradição tem regras muito especiais, que a minha família sempre cumpriu à risca. Assim dentro da massa do Bolo-rei vinha uma fava e um brinde. Quem apanhava a fava, sorte macaca, tinha que pagar o próximo Bolo-rei. A quem saía o brinde, ia ter sorte o ano inteiro. O brinde não passava de um pechisbeque de latão embrulhado num pedaço de papel, normalmente uma figa ou algo semelhante, mas que a ocasião elevava ao estatuto de amuleto. Actualmente uma directiva europeia impede que o Bolo-rei venha com brinde, não vá alguém engoli-lo e morrer de asfixia. Uma preocupação higienista e parva, e além disso em Espanha o “Rosca de reyes”, a versão espanhola do Bolo-rei, continua a vir com brinde, e apesar da ideia não ser de todo desagradável, nenhum espanhol morreu por causa disto.

Apesar da sua popularidade, o Bolo-rei não é exactamente de fácil digestão, e está longe de ser uma delícia. Trata-se de uma torta circular do tipo rosca, com um interior seco de textura semelhante ao pão, demasiado massudo. Por cima estão frutas cristalizadas, açucar e frutos secos. As frutas cristalizadas são o maior problema, pois não conheço ninguém que seja adepto das laranjas, tangerinas e figos desidratados que compõem o bolo, e há quem os ponha de lado antes de morder o Bolo-rei. É comum encontrar uma fruta cristalizada misteriosa, com uma textura semelhante ao nabo, mas de cor avermelhada, provavelmente conferida por um corante artificial. Os melhores são mais crocantes, com uma massa mais fofa e generosamente guarnecida de nozes, pinhões e passas, mas mesmo assim deixa muito a desejar. Apesar de não ser agradável, duas fatias de Bolo-rei chegam para deixar alguém empanturrado. É dose suficiente para substituir uma refeição.

Em suma: o Bolo-rei não é tão bom de comer quanto de olhar, e as crianças rejeitam-no como bolo digno desse nome. Podiam ter-se lembrado de um doce mais simpático para a quadra natalícia, qualquer coisa mais digerível. O “english cake”, o Panetone ou o Bolo-rainha, todos primos mais húmidos do Bolo-rei, são bem mais agradáveis ao paladar. Contudo existe uma forma deliciosa de apreciar o Bolo-rei, uma receita que sigo desde pequeno. Basta esperar alguns dias até ficar um pouco duro, torrá-lo, passar manteiga e acompanhar com chá. Assim se redime o enfadonho Bolo-rei. Tenham um excelente Dia de Reis, e pelo menos hoje dêm uma oportunidade a esta espécie de pão, tão português que nem existe uma tradução do seu nome para inglês.

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