quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

A bola rola entre a "elite"


Arranca amanhã mais uma edição do campeonato de futebol de Macau, agora conhecido por “Liga de Elite”. A “elite” de que se fala é um conceito difuso, uma vez que pouca gente que passa pelo futebol macaense se pode considerar uma elite, mas o que não faltam por aí são campeonatos medíocres que se auto-intitulam “superligas” ou algo do género. As novidades este ano passam pela desistência da equipa da casa do FC Porto de Macau, uma das equipas de topo dos últimos quatro anos, ou a saída de Rui Cardoso do commando técnico do Benfica de Macau. As restantes equipas aumentam a ada no que passa o aorçamento, investem cada vez mais em jogadores profissionais que conferem mais qualidade a um campeonato que tem a fama de ser muito fraquinho e com assistências residuais. Um dia antes do início da época 2013, é altura de falar do desport-rei em Macau, em jeito de retrospectiva, fazendo uma análise “a frio”.

Poucos meses depois de ter chegado a Macau, e durante um dos habituais telefonemas de fim-de-semana para a família lá no rectângulo, o meu pai perguntou-me “como é aí de futebóis”. Ainda não tinha uma opinião formada sobre o futebol em Macau, mas sendo um território diminuto em área e população, e estando situado na Ásia, só podia ser mauzinho, nem que seja pelos padrões de Portugal, a que estava habituado. E é mesmo. Por muito que isso envergonhe os amantes do desporto-rei no território (que são muitos) e deixe frustrados os agentes que tentam melhorar o seu nível, o futebol em Macau estará ao nível da II divisão distrital da AF Setúbal. Para ser simpático, pois existirão equipas no campeonato do INATEL que dariam luta à selecção do território.

Já tinha uma vaga ideia do nível do futebol local mesmo antes de aqui chegar. Na qualificação para o mundial de 1994 nos Estados Unidos a selecção macaense foi goleada em todos os jogos do seu grupo, sendo o melhor resultado uma derrota de 0-5 contra a Malásia. O facto de ter apenas meio milhão de habitantes (na altura ainda menos) pode explicar muita coisa, mas vejamos o exemplo da Islândia: apenas 320 mil habitantes, mas com uma selecção que hoje raramente sofre goleadas, e chega a bater o pé a selecções europeias poderosas. Estivesse a Islândia filiada na AFC e jogasse nas qualificações asiáticas, e já tinha ido a um campeonato do mundo, pelo menos. Não basta ter muita gente para ter uma equipa competitiva. Se fosse assim as finais dos mundiais eram sempre disputadas entre a China e a Índia. Importa que se adoptem as políticas certas, que passam na formação de base, na motivação dos jovens, rigor técnico na captação de talento, na disponibilização de espaços para treinar, ou na contratação de técnicos estrangeiros com qualidade, para citar algumas exigências básicas. Em Macau não se aposta em nada disto. Pelo menos a sério, e os resultados só podem mesmo ser desastrosos.

Se a mentalidade vigente é a do “melhor é difícil”, então mais vale assumir a pequenez e não alimentar as expectativas que tantas vezes são fomentadas. A Associação de Futebol de Macau (AFM) teve há alguns anos a uma iniciativa louvável, com a criação de equipas de sub-23, sub-19 e sub-17 que disputam os campeonatos seniores de Macau. A ideia é boa, de fazer estes jovens jogar juntos regularmente, criando assim automatismos que podem servir à selecção do território quando disputa torneios internacionais contra equipas também elas rotinadas, mas do que adianta se não existe formação? Até à adolescência os jovens jogam apenas na escola ou com os amigos, sem direcção técnica, ou se revelam algum talento vão para a escola de futebol do IDM, que treina uma ou duas vezes por semana na Taipa, com técnicos pouco credenciados em regime de part-time. Depois disto só tomam o gosto pela competição propriamente dita quando chegam ao futebol sénior, já demasiado tarde, pois sem campeonatos de escalões jovens, não evoluem em termos competitivos. Começa-se a construir a casa pelo telhado.

Já foram ensaiadas mil e uma estratégias, mas nada resulta sem um plano sério e bem pensado. A preparação física é relegada para segundo plano, e não se consegue incutir nos jovens uma mentalidade de que o futebol também se aprende sem bola. Se o treino não envolve pontapés na redondinha, não é treino. Em Itália, por exemplo (e que exemplo), os jovens que se iniciam no futebol não fazem mais senão corrida nos primeiros treinos. É garantido que não lhes põem uma bola à frente dos pés até terem pernas capazes de lhe dar uso apropriado. Em Macau muitos jovens sonham vir a ser um dia como os seus heróis, as estrelas dos principais campeonatos europeus, mas não passam pelas mesmas etapas que estes, e tentar imitá-los não chega. A técnica adquire-se com esforço e trabalho, não se copia. Pode-se nascer talentoso, mas sem estímulo o talento fica adormecido, sem que alguma vez se revele ou desenvolva. Tive o meu filho na escola do IDM durante três anos, e algo que não consigo entender é como os tais “técnicos” não dão noções de táctica aos miúdos (será porque também não sabem?). Deixam-nos jogar peladinhas, todos atacam, todos defendem, nem uma orientação técnica, nem uma sugestão de posicionamento, nada. Não se chega sequer a fazer uma triagem de quem é melhor a atacar ou a defender. Só porque se trata de miúdos com menos de 10 anos, não significa que sejam patetas, e que não compreendam conceitos tão simples como uma posição no terreno de jogo.

A AFM apostou insistentemente em técnicos japoneses desconhecidos para orientar a selecção, completamente desconhecedores da realidade local, sempre com o pretexto de que “o Japão é a equipa mais forte da Ásia”. Ora não vai ser um japonês qualquer que vai trazer uma receita milagrosa para tirar o futebol de Macau da lama. Porque não apostar num treinador europeu, ou mesmo português? O único treinador que vi passar pelo território trazendo métodos novos e interessantes foi Isidro Beato, que ficou alguns meses no Negro Rubro, em 1994. O problema passará sobretudo pela pouca vontade que um técnico que queira fazer um trabalho sério tenha em vir para o território, mesmo que bem pago. Para chegar aqui, tentar fazer algo construtivo e depois esbarrar com o autismo de certos dirigentes (alguns deles uns vaidosos que pensam entender imenso de futebol) e confrontado com a rebaldaria dos campeonatos ou a falta de locais para treinar quando é preciso, mais vale ir treinar no distrital de juniores de Beja. Os futebolistas estrangeiros que têm chegado ao território nos últimos anos e conferido uma (indesmentível) maior qualidade ao campeonato local vêm aqui parar muito sem saber o que esperam, e com a ténue esperança de dar o salto para o campeonato chinês. Mesmo assim tem sido difícil. Será que alguém da liga chinesa faz prospecção no campeonato de Macau?

Mas já diz o povo e com razão, “árvore que nasce torta jamais se endireita”. Macau chegou a ter uma selecção mais ou menos jeitosa, pelo menos comparada com a actual, nos idos anos 60, formada essencialmente por militares portugueses. Nos anos 80, e já sem militares, começou a disputar torneios internacionais e a participar em fases de qualificação para mundiais e campeonatos asiáticos. Os resultados eram sempre negativos, claro, mas podia-se alegar a falta de experiência como desculpa. A selecção foi até aos anos 90 constituída na maioria por jogadores portugueses residentes no território, e muitos chegavam a ter alguma qualidade, com um passado no futebol federado em Portugal. Só que a falta de condições e o baixo nível competitivo, aliados ao facto de virem para o território exercer outra profissão relegando o futebol para segundo plano, não os deixavam aproveitar essas qualidades e tentar transmitir essa “escola”. A população chinesa local jogava por carolice, pois muitos precisaram de começar a trabalhar ainda bastante jovens, o que não lhes deixou muito tempo para futebóis, coisa que era vista como “uma inútil perda de tempo”. Só começaram a surgir talentos locais de etnia chinesa em número significativo nos últimos anos, e mesmo assim sob o olhar atento da família, que se certifica que prestam mais atenção aos estudos. Uma atitude realista, de quem sabe bem que de Macau dificilmente sairá um grande craque que brilhe nos maiores palcos mundiais, ou sequer um profissional que possa depender da bola para comer e pagar as contas. Enfim, é uma ilusão que só é tolerada por se tratar de um desporto, e uma ocupação “saudável”. Pelo menos assim os miúdos ficam longe das drogas, e tal.

O entusiasmo do público local esteve sempre presente: os chineses gostam de futebol como gostam de qualquer jogo, mesmo que não saibam dar um pontapé numa bola. Mas perante esta realidade o ónus dos maus resultados recaía sempre sobre os “portugueses”, que mandavam no futebol. Estranhamente ou talvez não, deu-se um retrocesso qualitativo nos últimos anos da administração portuguesa. Lembro-me da visita da equipa principal do Benfica em 1996, disputando então um amigável com a selecção local no campo do Canídromo. Ao intervalo o jogo estava empatado a zero (o marroquino Hassan falhou uma grande penalidade), mas na segunda parte os encarnados marcaram oito contra os zero de Macau. Mais tarde foi explicado que a apatia do Benfica no primeiro tempo deveu-se à possibilidade do público chinês “ir embora ao intervalo” caso o resultado fosse já muito desnivelado. Em 1998 o Salgueiros veio para o torneio de Amizade Macau/Cidade do Porto, já no Estádio da Taipa, e aos vinte minutos a equipa de Paranhos já vencia o onze local por seis bolas a zero. Foi-lhes dito então para “tirar o pé do acelarador”, e não viriam mais a marcar, jogando em ritmo de treino ligeiro. São dois episódios quase anedóticos que ilustram bem a pobreza do futebol no território. O campeonato era bastante fraco e assumidamente amador, disputava-se apenas durante três ou quatro meses por ano, e muitos dos jogadores com qualidade que tinham permanecido no território estavam envelhecidos. Já não havia quem investisse e trouxesse jogadores de Portugal, como aconteceu em 1993 com o Negro Rubro, que chegou a ter a espinha dorsal da selecção de Macau.

Com o evento da RAEM, as coisas não melhoraram muito. Macau sofria derrotas copiosas contra equipas mais conceituadas (0-10 contra um Japão de segunda linha no Estádio da Taipa), e começou a perder com selecções do seu nível, que chegava a vencer sem muita dificuldade no passado. Aliás um bom exemplo de como alguns países investem no futebol e registam evidentes progressos é a selecção das Filipinas. Os filipinos chegaram a ser goleados por Macau nos anos 90, mas entretanto investiram, descobriram em divisões secundárias dos campeonatos europeus jogadores de origem filipina, e montaram uma equipa que não só é capaz de vencer Macau com facilidade, mas disputar resultados contra equipas de nível médio na Ásia. Actualmente o onze do território só pode ambicionar discutir resultados ou não perder por muito contra equipas como Timor-Leste, Mongólia, Guam ou Brunei, e mesmo estes estão à frente do território no ranking da FIFA. As derrotas e as goleadas sucedem-se, e isto torna-se mais grave quando se trata de torneios entre selecções jovens. Que motivação e que futuro têm estes jovens que aprendem desde cedo a levar cabazadas? Para ser sempre o bombo da festa mais vale a pena não participar, ficar em casa. Mas o que se pode exigir de jovens que não tiveram as bases? É como se entrassem na Universidade sem ter aprendido a ler e a escrever. Só podem mesmo reprovar forte e feio. Mesmo que por algum passe de mágica a AFM começasse amanhã a fazer tudo com pés e cabeça, seriam preciso esperar vinte anos até se colherem os frutos. Mas respondendo agora à pergunta do meu pai: o que temos aqui de futebóis? Nada…ou melhor, temos, mas é mau demais.

1 comentário:

Hugo disse...

Para mim, um dos grandes factores que impede um maior desenvolvimento do futebol local é que os jovens já têm tudo o que precisam em casa e não se sstão para chatear com os treinos.
Apesar de tudo , a chamada Liga de Elite tem vindo a melhorar