segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Património(s) e "feng-shui"


José Rocha Dinis voltou de férias fresco que nem uma alface, como ficou patente no regresso da rubrica "Opiniões", que vai para o ar às segundas-feiras no Telejornal. Análise bem feita ao "fenómeno Coutinho" (cheguei a pensar que o director do JTM iria apostar numa derrota estrondosa de Coutinho, imaginem), com politiquice aqui, politiquice ali, pelo menos Rocha Dinis conseguiu dar uma cobertura de "normalidade" a algo que faz muito boa gente trepar pelas paredes. A certo ponto o tema muda para a iminente demolição do edifício do Hotel Estoril, e dá-se um pequeno equívoco entre Património e património, ou seja, entre o conjunto de edifícios que constituem pontos de interesse histórico e cultural numa determinada localização geográfica, e o património individual, aquilo a que cada um chama de seu, e que tem para si grande valor sentimental ou/e financeiro.


Pronto, aqui com a ajuda do Priberam fica mais fácil perceber, por exemplo, que pouca gente usa esta palavra no seu sentido literário. Pode-se afirmar que "os dentes são o nosso maior património", que isso nada tem a ver com o património comum, o de todos, que nos foi deixado pelos nossos antepassados, o Património Histórico. Parece que a simpática apresentadora do Telejornal adoptou  esta redutora definição da palavra, e questionou a interpretação que o seu convidado deu à expressão "valor patrimonial". Não foi Rocha Dinis que estava a querer tirar nabos da púcara, pois a sua definição de "valor patrimonial" é a única aplicável ao tal levantamento que se pretende fazer: neste caso o valor venal do imóvel. Mas não se intimide a jornalista em questão, que isto acontece aos melhores, e é possível que o próprio contexto tenha interferido nesse julgamento. Outro exemplo:


Por exemplo, nesta capa do Ponto Final reportada a Setembro de 2012 dá-se destaque à proposta de lei que daria livre acesso à declaração dos interesses patrimoniais por parte do CCAC, que na altura levantou certas reservas quanto à protecção da privacidade de eventuais "inspeccionados" - gente muita pobrezinha, portanto. Não creio que por "Mostrem o património" o autor do cabeçalho do PF quisesse dizer que Vasco Fong, na altura comissário do CCAC, estivesse interessado em que eventuais indiciados de crimes de corrupção ou favorecimento ilícito lhe fossem mostrar as Ruínas de S. Paulo. Como já disse, acontece aos melhores. Vamos antes ver a que "património" em particular se referiam os dois jornalistas.


E aqui está o edifício do Hotel Estoril, abandonado há quase duas décadas, mas que foi o primeiro hotel-casino inaugurado por Stanley Ho, ainda antes do mítico Hotel Lisboa. Agora, os hotéis demolem-se como outro imóvel qualquer, e a estrutura deste em particular está para lá de se justificar uma renovação - não é propriamente o original Ritz-Carlton de Nova Iorque ou o singaporeano Raffles. A discussão tem no entanto derivado para uma parte específica da estrutura, a fachada, ilustrada com um desenho que...bem, já quis dizer qualquer coisa, com certeza, mas alto lá, que o "boneco" tem dono.


Ou neste caso, um "autor". Socorri-me do blogue "Macau Histórico" (com a devida vénia), que neste artigo dedicado a artistas estrangeiros que passaram por Macau fala-nos de um Oseo Acconci, natural de Pisa. Certamente que por "Acconci" e "Pisa" (ou pizzas, neste caso) os conhecedores do passado recente de Macau até ao seu presente já identificaram pelo menos o apelido. Sim senhor, o artista deixou uma respeitável descendência, que por sua vez firmou raízes no território, chegando a miscigenar com outras famílias locais, e assim têm a origem desta família, actualmente ainda relativamente numerosa. Oseo Acconci é, portanto, o autor da pintura naquela fachada, que se diz ter pensado especialmente para o próprio hotel.


Parece quase inevitável que a pintura vá desaparecer, e nem encontro ninguém que defenda a sua preservação ou transferência para outro espaço. Alexis Tam parece excepcionalmente entusiasmado com a ideia, e fala-se mesmo de uma questão de "feng-shui", uma noção que deixou Rocha Dinis algo apreensivo - e haja alguém que finalmente partilhe do meu "face-palm" em relação a este tema. Ora se o autor da obra está perfeitamente identificado, os seus descendentes deviam ter uma palavra a dizer quanto a este PATRIMÓNIO - e aqui repare-se como a palavra até é aplicada na perfeição: foi o patriarca que a deixou. Tanto a opinião publica como o próprio Siza Vieira (pasme-se...) só pensam em deitar abaixo o azulejo com aquela menina semi-nua de nádegas rechonchudas, e onde o pudor e a decência são asseguradas pela folha de uma simples plantinha. Que mal fez o malogrado Oseo a este gente para que despreze assim a sua obra? E porque se mantém a família indiferente a esta discussão? Mas voltando a um mistério ainda maior: a própria sobriedade dos nossos dirigentes, e esta coisa do "feng-shui".


Já sabem o que eu penso de religiões, superstições, crendices e outros contos da carochinha, e aqui nem precisam de me pedir para respeitar nada, pois o "feng-shui" tem origem em critérios baseados em factos científicos - alguns datados e amplamente refutados, mas científicos - mas com o evento da modernidade foi aproveitado para fins menos honestos, pronto, ficamos por aí. De facto, e como o Rocha Dinis referiu e muito bem, isto tem muito pouco de científico, num Executivo que, e na sequência do que fizeram os seus predecessores, repetiu "ad nauseum" que a bitola dos critérios a utilizar seria sempre essa: científica. Se for para usar o "feng-shui" para mandar coisas abaixo, então isto pode ser pior do que se possa imaginar. Só desta vez: cruzes-canhoto!


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