segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Os pontos nos "is"



Em boa hora, é o mínimo que se pode dizer no que ao "timing" diz respeito, da entrevista de Jorge Neto Valente à Rádio Macau, transmitida no último Sábado. Numa altura em que se preparam alterações no Governo, e em que Chui Sai On faz finalmente mudanças radicais na equipa que tem sido a "espinha dorsal" dos três primeiros executivos, nada como escutar alguém com muitos anos de Macau, e figura familiar aos círculos da governação, fazendo o balanco dos 15 anos de RAEM que se completam no próximo dia 20 de Dezembro, e perspectivar o futuro próximo, nem e que seja apenas dos próximos cinco anos - o dr. Neto Valente pode ser um conhecedor profundo da realidade local, mas nao é um oráculo. Estive em Bangkok desde sexta à noite até hoje à tarde, e soube da entrevista através das redes sociais. Escutei-a ontem depois de ter lido alguns comentários que foram sendo feitos entretanto, e é com um sentimento misto que não me resta senão dar razão ao presidente da Associação dos Advogados de Macau em quase tudo o que foi dito. Fico com um sabor agridoce na boca, pois mesmo quando gostaria de dizer que está enganado quanto a alguns aspectos da realidade de Macau em que não concordo no grau e no género, mesmo aí dou-lhe o benefício da dúvida, e valha-nos existir esta voz que nos vai avisando de certos perigos de que muito boa gente não da conta, mesmo sob o risco de ser impopular.

Foi difícil mas foi; depois de inúmeras tentativas frustradas, consegui dissociar a opinião do dr. Neto Valente da evidente má vontade que demonstra contra o sector dito pró-democrata que vai sendo a única oposição política em Macau, e infelizmente a única alternativa para quem quiser ser ouvido em Macau, mas não alinha com a nomenclatura. Dizer que se criou um fosso entre a governação e a opinião pública é o mesmo que comparar o muro de Berlim ao muro com arame farpado que o sr. Gonçalves levantou nos limites do seu pomar para impedir que os putos reguilas da vizinhança se fizessem às suas laranjas. Parece que o problema do dr. Neto Valente é simplesmente político: aqueles são os adversários, e como é de esperar em qualquer batalha política que se preze, há que lhes "chegar a roupa ao pêlo" - mesmo que de vez em quando "escorregue" e cometa desabafos do tipo "são pessoas que não representam ninguém". O problema aqui é que representam cada vez mais gente, e começam a fazer notar-se nas universidades, onde são cada vez em maior número. Temos um grupo que se diz a favor do sufrágio universal, resume a "democracia" a isso mesmo, e depois? De um lado ficamos com o poder, que não quer ouvir falar de democracia porque isso "é mau"- sobretudo para eles, aparentemente - e do outro lado uns tipos que propõem o sufrágio directo como princípio da democracia, e pelos vistos tambem como o seu meio e fim. Como fica Macau com a condicionante de ser uma região administrativa especial da da China é mais difícil de explicar; sufrágio universal, pois, mesmo a sangue frio e sabendo que uma parte importante do eleitorado vota em quem lhes paga, é uma ideia, mas e a partir daí, e já sem retorno, como é? Parece-me uma aposta demasiado arriscada, especialmente se tivermos em conta que não estamos desesperados.

Isto leva-me ao ponto seguinte: como estamos nós aqui em Macau? Nada mal, em comparação a outros lugares da região, e até do mundo, como aliás salientou o dr. Neto Valente. Não podendo discordar de todo da análise que faz, não posso também concordar, pelo menos em muitos aspectos, mas o causídico ganha aos pontos, e já vamos ver porquê. Neto Valente sublinha o facto de "não se verem mendigos em Macau, como se vêem noutros países", e que "dorme na rua quem quer". Parece-me uma visão algo redutora, esta, e qualquer pessoa com bom senso entende que ninguém dorme ao relento por opção. De facto Macau está dotado de instituições que garantem que no mínimo não fica ninguém sem um tecto para passar a noite, considerando este como ponto de referência da mais humilhante condição da existência humana. Há pessoas que preferem dormir no passeio a procurar estas instituições, ora por medo de serem institucionalizadas e dessa forma perderem a liberdade, ora devido a um qualquer transtorno de ordem psiquiátrica, ou por outros motivos que não a falta de opção. Existe também muita pobreza envergonhada, bem como muita indiferença; não é toda a gente que tem coragem para estender a mão a pedir ajuda, mesmo que esteja desesperadamente necessitado. Essas são questões que o dr. Neto Valente não teria tempo para elaborar com mais detalhe naquela entrevista, claro, nem é ele (nem a maior parte de nós) uma Madre Teresa para assegurar que toda a gente tem um prato de sopa quentinha e uma cama onde se deitar. Com o que não posso estar de acordo é com uma certa perspectiva miserabilista que muita gente advoga, de que "temos muita sorte", que "podia ser pior", e outras pérolas do género. Vamo-nos cingir à frieza dos números: Macau tem o quarto maior PIB per capita do mundo. Não sou eu que o diz, mas o Banco Mundial. Aqui está:

                          2010     2011      2012       2013

Luxembourg  102,679 111,913 103,859 111,162
Norway           86,096    99,091   99,636 100,819
Qatar               71,510    88,861   92,633   93,352
Macao, China  53,046   67,062   77,196   91,376
Switzerland     70,174    83,270  78,929   80,477
Australia         51,825    62,081  67,436   67,468
Denmark         56,411    59,912  56,364   58,894
Sweden           49,377    56,724  55,039   58,269
Singapore       46,570     52,871  54,007   55,182
United States  48,358    49,855  51,755   53,143
Canada           47,465     51,791  52,409   51,958
Austria            45,017     49,485  46,792   49,054

Portanto temos aqui os 12 países e territórios com o maior PIB "per capita" do mundo, com valores em milhares de dólares anuais, números que podem ser verificados aqui. Macau surge no quarto lugar com um rendimento de 91,376 de dólares anuais por cada residente, e dividindo este número por doze e convertendo à denonimação local, dá-nos 60,917 patacas por mês. Por mês? Quem ganha 60 mil patacas por mês? Menos de 5% da população activa, tenho a certeza, e já estou aqui a incluir empresários por conta própria. Não estou a querer dizer que com isto que cada residente devia auferir um rendimento desta natureza, e sabemos que estes números "gordos" se devem às receitas do jogo, e que a esmagadora maioria de nós nada contribuíu nesse sentido. Também sei que os habitantes do Qatar, que no PIB conseguem estar à nossa frente, nascem já com uma participação nos chorudos lucros do negócio do petróleo daquele país, e sem terem feito um buraco no chão. Não faço ideia de como se vive no Qatar, mas tenho umas luzes sobre como se vive na Suíça, na Austrália ou no Canadá, tudo países atrás da RAEM nesta lista, e vive-se bem melhor que aqui, sem margem para dúvidas. Este é o meu único "porquê", dr. Neto Valente: tudo bem, é ilusório aspirar a uma distribuição equitativa da riqueza, se bem que um bocadinho de equilíbrio ia resolver muitos problemas, mas será um disparate ambicionar a viver melhor, ou pelo menos ao nível dos países com menos dinheiro que Macau?

Olhando com mais atenção para aquela tabela, verificamos um verdadeiro "salto" entre 2012 e 2013, com os rendimentos brutos "per capita" a subirem na ordem dos 20 pontos percentuais. E o que se viu desse aumento? Foram resolvidos os problemas estruturais com que o território se debate, e que se têm vindo a adensar? O problema da saúde, e da qualidade da mesma, como o dr. Neto Valente apontou e bem? Ou como também foi referido pelo presidente da AAM, o que foi feito em matéria de obras públicas nos últimos anos, e o que beneficiou a população com isso? E é quando fala da área que melhor conhece, a Justiça, que Neto Valente põe finalmente o dedo na ferida: a falta de preparação. Não é só nos tribunais e nos serviços públicos que isto é notório, mas um pouco por toda a parte, e de facto mais do que a velha desculpa da "falta de experiência", que ao fim de 15 anos já começa a deixar de ser "justificação" para passar a servir de "desculpa esfarrapada". De facto há cursos que não servem para nada, e que só resultam num número excessivo de licenciados que não cobrem as lacunas em termos de quadros especializados de que a RAEM tem falta. Mas é sem dúvida no Direito, a "dama" que o entrevistado defende, que reside a maior preocupação, pois de facto a matriz portuguesa de onde deriva a jurisdição de Macau é a trave-mestra que sustenta todo o resto. Sem este suporte nada mais é garantido, e qualquer investimento que se faça para garantir este valor pecará sempre por escasso. Nisto estamos 100% de acordo.

Agora onde Neto Valente ganha aos pontos por falta de comparência do adversário é nas críticas que lhe podem ser imputadas. É que uma pessoa com o calibre do dr. Neto Valente pode-se quase dar ao luxo de dizer o que muito bem lhe apetecer, pois conta com o apoio, ou pelo menos a deferência de quem tem no mínimo dois palmos de testa. Entre os comentários que li no Sábado houve vários que nem vale a pena aqui mencionar, mas pelo menos um que prova aquilo de que falo: "o dr. Neto Valente diz que não há pobreza em Macau, por isso não vive na mesma cidade que nós". Isto vai além da má vontade, ou de alguma antipatia que se nutra pela pessoa de Neto Valente, e transborda a panela da burrice e da iliteracia. Tenho a certeza que o presidente da AAM não anda por aí a contar se o número de mendigos justifica que se afirme que em Macau há pobrezinhos, mas ele NUNCA disse que não existia pobreza. É esta dificuldade em ler, sim, nem se trata de interpretar mas de LER o que está escrito que deixa Macau neste atraso estrutural. É esta gente com horizontes pequeninos, pequeninos, para quem basta ter dinheiro no bolso e fica tudo bem, enquanto que ler, andar informado e encher a cabeça de conhecimento é apenas "perder tempo", que vai servindo de pedra amarrada na perna e que nos vai puxando para o fundo do mar. Esses que ainda se dão ao luxo de dizer mal da vida (quem nem lhes corre mal) e ainda se queixam dos governantes, são até capazes de ter alguma razão, no fundo: têm o que merecem. Se calhar é de propósito, é "mesmo assim". Não sei se são estes os "ignorantes e idiotas" a que Neto Valente se refere na última parte da sua entrevista, mas talvez fosse preciso mais do que recrutar profissionais de saúde: é preciso também mais gente que pense e que raciocine.

Podem ouvir aqui a entrevista do dr. Neto Valente.

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