segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Sempre em festa, parte IX: as festas "lá da terra"


Domingo à tarde nas festas da Nossa Senhora da Pernacurta, em Espinhais de Baixo.

Já aqui falei hoje da série "Bem-vindos a Beirais", série da RTP que passa aos fins da tarde de Domingo na TDM e na própria RTPi diariamente de segunda a sexta, por volta das 3 da madrugada. Beirais é uma localidade imaginária de "anywhere Portugal", e a série foi filmada na localidade de Carvalhal, concelho do Bombarral, Leiria, que assim ficou no mapa. Existem mil e uma localidades do interior do nosso país como Beirais. Há gente que respira, vive e sonha, e que compõe o recheio dessa sanduíche entre Lisboa e o Porto que é Portugal - a azeitona é Coimbra, e para beber há sangria do Algarve e Poncha da Madeira.

Estas localidades, freguesias de concelhos já de si muitos deles obscuros, têm populações de 500, 1000 ou 2000 pessoas, um mimo, e onde praticamente toda a gente se conhece. São feitas de gente patriótica e orgulhosa, gente que não estranha a terra, os campos e os ribeiros, e como convém são temerosos a Deus. Longe da Superliga dos santos que se comemoram nas grandes cidades, Santo António, São João e São Pedro, todos têm o seu santinho ou santinha, o seu padroeiro ou padroeira, que comemoram, e quase sempre em Agosto. É preciso aproveitar a vinda da malta que deixou a terra para as urbes ou para o estrangeiro, para dar mais vida à festa, e já agora o tempo veranil também dá uma ajuda.

Assim imaginemos a frequesia de Espinhais de Baixo, que em meados de Agosto, digamos, sei lá, 18 de Agosto? comemora as festas de Nossa Senhora da Pernacurta, padroeira dos mancos, coxos e deficientes das Forças Armadas. É durante esse fim-de-semana que se levanta o palco na praça da vila, penduram-se as flamas, e montam-se os carrosséis à beira da Estrada. Para os mais pequenos aqueles angustiantes com animais de madeira que andam à volta durante três minutos ao som de uma gravação miserável do tema da Abelha Maia, e para a malta da pesada, os carrinhos de choque.

Há ainda uma roulotte de farturas, um carrinho de algodão-doce e ainda "artesanato", que é como quem diz, pechisbeque daquele que sai no bolo-rei transformado em brincos e em pulseiras. Este ano pela primeira vez há uma barraca que faz tatuagens provisórias, apesar da oposição da paróquia, que este ano organizou (como habitualmente acontece, aliás) a feira, em conjunto com a Junta de Freguesia. O Clube Desportivo, Recreativo de Cultural Baixo-Espinhense (CDRCBE) ganhou a concessão para uma bancada de rifas para recolher fundos para a equipa de futebol, que este ano subiu à II Divisão...distrital. As rifas têm sempre prémio, mas normalmente é um lápis novo com borrachinha na ponta, ou um porta-chaves com o emblema do CDRCBE colado em autocolante. Não faltam ainda os vendedores ambulantes ciganos, que vendem desde conjuntos de cama a loiça de barro e galos de Barcelos de loiça.

O presidente da Junta é Joaquim Ramela, o cidadão mais habilitado de Espinhais de Baixo: tem a frequência do primeiro-semestre da Licenciatura em Enologia da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, que abandonou depois de se descobrir que era intolerante ao álcool. É a ele que cabe inaugurar as festas ao final da tarde de sexta-feira, proferindo o mesmo discurso de há oito anos mas que ainda ninguém entendeu do que se trata. O arranque do fim-de-semana de borga e devoção à Nossa Senhora da Pernacurta fica oficializado com o rebentamente de meia dúzia de foguetes, e quando digo foguetes, não quero dizer "fogo de artifício". Quero mesmo dizer foguetes, daqueles que estalam no ar, "crack!" e fazem a luz de um "flash" das máquinas fotográficas antigas. E ai de quem levar com a cana na cachola.

Saltam cá para fora os grelhadores, assam-se as bifanas, as sardinhas e os coiratos; há um pequeno foguereiro que vende polvo assado, sempre com pouco sucesso, pois a carne é muita rija para os dentes cariados dos baixo-espinhenses. Quem lucra bastante neste dia é o Antunes da Tasca da Piedade, que cobra 3 euros por cada copo de plástico de cerveja à pressão. O vinho fica por conta da Adega Cooperativa de Espinhais de Baixo, cortesia do engº Amílcar Cabrudo (engº só por reverência ao proprietário dos únicos pés de videira e o único cavalo da vila). Pode ou não haver largadas de touros essa noite, e mais durante o fim-de-semana, depende da vossa imaginação: se Espinhais de Baixo ficar do Ribatejo para baixo, há, se ficar para cima, há no máximo uma pega do leitão com sebo. Em ambas as situações a bebedeira torna a "tradição" animada.

No dia seguinte, e já com os espíritos elevados, os baixo-espinhenses saem à rua, da parte da tarde, claro, para usufruir do festival, já com os emigrantes a juntarem-se à festa. A população de Espinhais de Baixo mais que duplica nesse fim-de-semana: dos habituais 228 para mais de 500! Depois das famílias abraçadas e os amigos revistos, há uma actuação do Rancho Folclórico da freguesia vizinha de Carcomel, que conta com dois elementos do extinto Grupo de Cantares e Dançares de Espinhais de Baixo, que não resistiu à falta de verba (e de convites para actuações). O calor e o dia comprido convida a ficar pela feira, e janta-se por lá "uma febra", ou três sardinhas pequenotas com uma salada de pimentos deprimida num prato de papel por 8 euros (11 com uma cerveja, 14 com duas, por aí em diante).

À noitinha há bailarico na Praça, com a actuação do grupo local, os "Super-Espinhenses", banda liderada pelo Manecas, que tem a única loja de artigos eléctricos da vila, bem como o único orgão electrónico. A banda decalca temas da vasta coelcção de cassetes pimba! do seu vocalista, e dos restantes músicos - todos "competentes", sabem as notas, e isto é o melhor que se pode dizer deles - destaca-se um, que agita furiosamente a pandeireita sempre ao ritmo de "Mony, Mony", do Billy Idol. As pessoas de fora perguntam sempre "quem é aquele entusiasta da pandeireita", e dizem-lhe que é o Chiquinho, a "mascote" da vila, que "é doente, coitado". Este "doente" é um eufemismo para um atraso mental profundo, provocado por uma intoxicação por chumbo que o pobre homem já na casa dos 40 teve quando era miúdo, e tinha a mania de beber as cargas das lapiseiras e comer os carvões dos lápis na escola primária.

Depois do bailarico, comes e (muitos) bebes, mais uma largada de touros/leitão ensebado, conforme, é hora de repousar, e os que ficam depois das cinco da matina vão com toda a certeza perder o momento solene da festa: a procissão de Domingo à tarde, onde a imagem da Nossa Senhora da Pernacurta desce a (única) rua da vila, e regressa depois à igreja matriz. Durante a cerimónia, que demora pouco mais de meia-hora, os baixo-espinhenses atiram tremoços com casca à santa, uma tradição cuja origem se perdeu na bruma dos tempos; uma vez o prof. José Hermano Saraiva pensou em dedicar um programa ao assunto, mas não conseguiu encontrar Espinhais de Baixo no mapa. Ainda tentou lá ir, mas perdeu-se no cruzamento entre Vila Nova de Caminha e Vila Real de Santo António.

A procissão realiza-se à duas da tarde, quando faz mais calor, mas a hora deve-se sobretudo à idade avançada do Padre Jonas, que já perdeu a conta a quantos baixo-espinhenses baptizou, fez a comunhão, casou e deu a extrema-unção. Há quem diga mesmo que foi substituído algures em meados dos anos 70 por outro parecido, mas ninguém deu por isso, e os registos da paróquia ficaram irremediavelmente danificados com as grandes cheias de 1984. Como é um pouco surdo, pouco importa se lhe chamam Jonas ou outra coisa qualquer. O pobre pároco reserva durante todo o mês de Julho e a primeira metade de Agosto a hora e meia por semana que as suas pernas ainda lhe permitem andar para aquele evento anual, e nessa manhã ainda lhe dão meio Viagra, para ver se não adormece a meio dos vinte metros que separam a igreja do fim da rua.

O resto do Domingo é festa, é paródia, é má-língua e discussões com os feirantes ciganos, e a pequena Espinhais de Baixo torna-se uma verdadeira Babilónia, resultado dos esposos e dos filhos que os seus naturais levam consigo às festas "da terra". Ouve-se falar português, castelhano, francês, alentejano, tripeiro, ratinho, todos os idiomas - até sopinhas-de-massa e bocas-cheias-de-favas os nativos baixo-espinhenses trazem consigo. Os estrangeiros ficam maravilhados, fotografando até à exaustão o local mais rústico que alguma vez viram. Até o sombrio Paco, um guarda-prisional asturiano que a Alicinha das Chaves conheceu quando andou a "fazer tempo" na jaula por ter sido apanhada com contrabando do lado de lá da raia exclama satisfeito: "a mi me encanta!". Ao ouvir isto, o presidente Ramela, já com dois copitos acima do risco, responde: "ai a tua mãe canta? pró ano traz ela até cá, carago! Balha-nos a Nossa Senhora da Pernacurta...hic!".

Até para o ano, Espinhais de Baixo!

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