quinta-feira, 15 de outubro de 2015

O muro de vidro (pressão, corrupção, um corpo estendido no chão)


Não sei porquê, mas nem precisei sequer de me beliscar para ter a certeza que não estava a sonhar, quando li na edição de hoje do Jornal Tribuna de Macau certas declarações proferidas por Sam Hou Fai, presidente do Tribunal de Última Instância (TUI) da RAEM a propósito da abertura do ano judicial, que teve ontem lugar no Centro Cultural de Macau - é como se vindo dele não pudesse esperar outra coisa. Começa por elaborar alguns dos problemas com os magistrados locais se debatem, fala da existência de "pressões" (como se fosse o único departamento em que isso acontece...), e de seguida passa para as declarações que me deixaram mais estupefacto. Ou daí talvez não, não sei bem. O presidente do TUI faz referência à necessidade de um distanciamento entre os magistrados e a sociedade, aquilo que chama de "muro de vidro", para que dessa forma se consigam abstrair de "tentações" e "seduções", como ele lhes chama. No fundo está a sugerir que os magistrados não podem ser pessoas de carne e osso, mas antes máquinas implacáveis de fazer justiça,desprovidas de emoções, sentimentos, compaixão, ou algo que possa - isto a julgar pela concepção que o sr. dr. juiz tem de "justiça isenta e independente" - interferir com a "imparcialidade" da decisão. O presidente da Associação dos Advogados de Macau, Jorge Neto Valente, fez questão em vocalizar a sua discordância quanto a este conceito. E de facto é uma questão de senso comum: como vai o magistrado decidir sobre casos relativos à interacção dos componentes da sociedade civil, demitindo-se ele próprio dessa sociedade civil? Como vai um magistrado que nunca tenha sido casado julgar um caso de divórcio? Ou se nunca teve filhos, que autoridade tem ele para determinar a atribuição do poder paternal a um de dois cônjuges desavindos? Claro que toda a gente quer ter razão, e só se fala de "justiça" quando a sua balança pende para o nosso lado. Assim sendo, como vai um "muro de vidro" ajudar no que quer que seja?

Não é difícil imaginar que tipo de pessoa é Sam Hou Fai: autoritário, desconfiado, ultra-zeloso, reservado, um verdadeiro inquisidor-mor, modelo que adoptou para ele e julga ser o único que um magistrado deve adoptar. Provavelmente só se relaciona com outros da mesma estirpe, desconfiando do resto da mole que compõe a humanidade, como se estivesse escrito na sua testa tratar-se de alguém mui justo e insuspeito. Digo isto com a maior naturalidade do mundo, pois não conheço o sr. Sam Hou Fai, e nem gostaria de conhecer - para quê? Só me poderia cruzar com ele pelos piores motivos, para mim, lá está. A única circunstância que me levaria a permanecer no mesmo espaço do sr. presidente do TUI, que clarificou não se deixar seduzir pelas distracções da vida comum da plebe, seria sempre a pior - para mim, lá está. Para este senhor o princípio da presunção da inocência é uma formalidade. Toda a gente é potencialmente culpada até prova em contrário, e cabe quer a ele, quer ao seu exército de seres incorruptíveis, insubornáveis e impossíveis de manipular meter este caos na ordem. Ah sim, e há os advogados, é claro, esses manipuladores do que sem eles seria mesmo impossível de manipular. Certo, mas uma vez do "outro lado" da lei e da grei, os advogados levam no coiro como os outros, senão mais. Em Macau cheguei a ficar uma vez com o estatuto de arguido, suspeito de algo que não só não fiz, como ainda para qualquer ser racional e provido de bom senso seria tecnicamente impossível ter feito. Aqui o bom senso não se aplica. É inocente? Prove! Ou caso contrário, é bom que ninguém produza qualquer tipo de prova que passe por legítima, e que o incrimine, seu...cão! É uma chatice viver-se assim, suspeito, dependente da prova da própria inocência. Outra vez: não devo nada à justiça de Macau. Para esse peditório já eu dei.

Mas voltando ao assunto em epígrafe, ora essa, os juízes, procuradores e todos os restantes intérpretes do sistema judicial seja de onde for são pessoas. Muitas destas pessoas têm famílias, amigos, alguns dos quais já tinha antes de se tornar um "justo entre os mortais". O que o presidente do TUI sugere é que os magistrados se isolem de todos os que possam representar um perigo à sua imaculada reputação, que possam de algum jeito manchá-la. Curiosamente a sociedade tem uma maneira de antecipar este tipo de coisas: os amigos de quem passa para o lado dos "justiceiros" fazem questão eles próprios de o "isolarem". Deixa de ser "o Zé, que é um porreiraço", e passa a ser conhecido por "aquele chibo", e qualquer distância a que ele fique será sempre pouca. Acho que aqui o sr. dr. Sam Hou Fai pode ficar descansado, e bem precisa, tantos que são os fantasmas que pairam no ar à sua volta. Desconheço se tem, mas arrisco a dizer que não, que o presidente do TUI não tem filhos em idade escolar. Se tivesse sempre lhes podia perguntar qual é a sensação de crescer com um "muro de vidro" à sua volta. De ter os amigos a mudar de assunto quando ele chega por perto, ou afastarem-se, ou ainda a sussurrar "shiu, que vem ali o chibo", ou "o filho do chibo". Deve ser uma festa viver assim. Sem dúvida que se justificam as cento e tal ou duzentas e picos notas de mil que se auferem no fim de cada mês, mais os benefícios. O dinheiro, esse, é sempre insuspeito. Suspeitos são os que ganham dinheiro "sabe-se lá como". Esses com toda a certeza vão ter o que merecem quando forem levados a sr. dr. Sam Hou Fai e seus pares.

Numa coisa concordo com o sr. dr. Sam Hou Fai: Macau é um lugar pequeno, e as tentações espreitam a cada esquina. Aquilo que entendemos por "tentações" ou a nossa noção de "justo" e "injusto" é que pode ser variável. Até aposto que sim, que difere tanto como o dia difere da noite. Usemos como exemplo um caso concreto: imaginemos que eu era um fiscal de uma porcaria qualquer, sei lá, e que tal um agente da Brigada de Trânsito? Porreiro. Em pleno exercício das minhas funções, no cumprimento do meu dever, trá-lá-lá, deparo com um veículo estacionado quase na sua metade em cima do passeio (a julgar pela quantidade de casos desses, questiono-me se não vivemos em plena anarquia, ahem), só que antes de autuar o infractor, como me compete, reparo que a viatura é propriedade da minha cunhada, que vive/trabalha no edifício em frente do local onde o automóvel se encontra estacionado em contravenção. O que faço eu? Ligo para ela e digo-lhe que venha cá abaixo rectificar a ilegalidade, ou passo-lhe uma multa na mesma, por detrás do tal "muro de vidro" da apregoada "imparcialidade", que não conhece pai, mãe ou cunhada? Claro que opto pela primeira, que diabo, que isso de coimas e afins nunca foram dignas de constar de museu algum, ou algo que fique bem, quer a quem as produza, e muito menos ao seu destinatário. Recorrendo a um outro exemplo: e se eu for fiscal da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos de Macau, e deparar com um amigo meu a jogar no casino, sabendo de antemão que ele é funcionário público, e não estando nem perto nem longe próximos da data do Ano Novo Lunar? Dou-lhe um toque e digo-lhe para ir para casa, pois arrisca-se a ser filmado, ou chamo a tropa toda e lixo-lhe completamente a vida? Este "muro de vidro" teria de ser necessariamente muito opaco. E à prova de som, também.

Além da magistratura, temos outros departamentos onde errar "leva água no bico". O CCAC, Comissariado Contra a Corrupção, por exemplo, cujos agentes passam por um rigoroso escrutínio, e onde os vínculos laborais passam apenas pelo assalariamento, de modo a "facilitar" a saída de um eventual correlegionário menos..."cumpridor" e/ou "isento". Passo o exagero, mas basta ter um primo em terceiro grau que tenha sido apanhado a conduzir com os copos para ver reprovada a candidatura a agente do CCAC. Sim, são mesmo muito rigorosos, e sem saber exactamente quais ou outros detalhes a esse respeito, suponho que ali os agentes passam por rigorosos exames psico-técnicos, de modo a avaliar, e antes de mais nada, se "batem bem da bola", antes de os colocar em campo na luta contra a corrupção e outras ilegalidades administrativas. O agente do CCAC, se não é um ser perfeito, devia sê-lo, e ai dele que dê um sinal, por mais pequeno que seja, do contrário. Imaginem que numa das ocasiões em que me dirigi ao CCAC para entregar a declaração de rendimentos (desse ENORME montante que aufiro, e que estranhamente se eclipsa quase na totalidade antes da chegada do seguinte) tive uma dúvida num dos campos a preencher, e pedi à menina que me auxiliava no preenchimento que me ajudasse. No momento em que lhe meti o papel à frente, desviou a cara, fixando o olhar num ponto aleatório, evitando assim olhar para algum dos números de que é composto o meu (enooooorme) património, socorrendo-se depois de uma cartolina recortada, de modo a que ocultasse precisamente os espaços reservados aos meus dados pessoais. Fiquei a pensar, o que faria ela no caso de visualizar um desses dados que só a mim me dizem respeito. Será que vazava as vistas com um ferro aguçado em brasa? Achei aquilo tudo tétrico, desumanizado, semi-robótico. Somos pessoas, ainda, certo? Primeiro gentes, e só depois agentes?

No mesmo dia em que as declaraç­ões de Sam Hou Fai durante a abertura do Ano Judicial 2015/2016 foram publicadas na imprensa, um destes agentes do CCAC cometeu suicídio, saltando do topo do edifício Dynasty Plaza, onde fica sediado exactamente o Comissariado, aparentemente composto por homens e mulheres "de ferro". Ou será mesmo assim? Quem sabe se ali o "muro de vidro" foi mal idealizado, e abrange uma escadaria e um terraço - "tentações", neste caso - que nunca deviam existir? Problemas pessoais, ou do foro sentimental? Impossível, então e o escrutínio rigoroso que mencionei acima? Problemas de índole profissional? Mau, então se não podemos confiar nestes, em quem é que podemos confiar? O que se passa afinal? Em Macau todos sabemos quais são os problemas estruturais da justiça: a morosidade, provocada pela falta de magistrados bilingues, as traduções, etc.,etc., tudo problemas com que Macau se depara não só na área da justiça, mas também em muitos outros sectores. Agora, e as pessoas? E os erros, sendo que o erro é uma característica inerente à condição humana, à qual pertencem essas mesmas pessoas? As pessoas erram, e não escolhem onde errar, portanto erram na aplicação da justiça, portanto - nada é infalível, contando que exista a presença do factor humano. Aparentemente na magistratura, e isto a julgar pela teoria do "muro de vidro" apresentada pelo sr. presidente do TUI, os erros pagam-se mais caro. Se alguém errou aí, certamente que não terá sido inocentemente, pois afinal estão aí as "pressões" e outros factores externos que tentam desviar o curso da justiça, que se quer impoluto. Talvez neste "muro" existisse uma escadaria que nunca devia lá estar, que conduzia a um terraço que não devia existir, e de onde aconteceu algo que ninguém imaginava poder acontecer. Eu, como gente e não como agente, lamento a perda de uma vida humana. Humana, sem muros, de vidro ou outros quaisquer.

1 comentário:

Pedro Queiroga disse...

O presidente do Tribunal de Última Instância falou em "pressões" e falou muito oportunamente! Numa altura em que o sistema judicial nas duas RAEs enfrenta desafios sem precedentes no que toca à defesa do princípio de separação de poderes e independência judicial, depois das recentes declarações muito polémicas vindas de Pequim e dirigidas a Hong Kong

http://www.scmp.com/news/hong-kong/politics/article/1857506/hong-kong-leader-above-executive-branch-legislature-and

e mais tarde a Macau por via do “número três” da hierarquia do Estado Chinês que ainda esta Quarta-Feira defendeu a "manutenção da estrutura política (do território) com predominância do poder executivo na RAEM acima de todos os outros". (ver JTM)

Depois de estalar a polémica em HK com vários juízes e magistrados a mostrar abertamente a sua indignação, defendendo o princípio básico do nosso sistema legal de que ninguém está acima da lei, princípio que aliás está garantido pela Lei Básica,

http://www.scmp.com/news/hong-kong/politics/article/1861239/no-one-above-law-hong-kongs-former-top-judge-andrew-li-hits

ainda bem que Macau, nesta questão, está junto com a região vizinha na defesa do estado de direito e primado da lei!

É neste sentido que Sam Hou Fai defende um distanciamento e imparcialidade institucional especialmente em relação ao poder político e económico (o tal "muro de vidro" que tanto o indignou).

Excelente discurso de Sam Hou Fai.