terça-feira, 27 de maio de 2014

Um regime que não engorda - antes pelo contrário


E aí está, a corda esticou, esticou e esticou, e não só o nosso benemérito Executivo percebeu que já não esticava mais, como a rebentou, e levou com ela na tromba. Portanto a modos que, coisa e tal, devido à manifestação do último Domingo, a maior desde 1959 - isto significa que nem o azedume do "1,2,3" se compara - a AL adiou a votação na especialidade da lei que estabelece o regime de garantias dos titulares do cargo de Chefe do Executivo e principais cargos públicos. Sim, quando digo "na especialidade", isto significa que já foi aprovada na generalidade, como se pode ver na imagem, a 17 de Dezembro último, e como podem ainda constatar, com excepção dos "suspeitos do costume" (e ainda Chan Meng Kam, que nesse dia deve ter faltado para participar da festa de Natal dos conterrâneos de Fujian), foi aprovada por 28 dos 32 deputados. Portanto, o que está feito, feito está, e foi só na hora da verdade que a população finalmente percebeu que isto era, bem, sei lá, irrelevante para as suas vidas e para o seu dia-a-dia? Que não só não lhes diz respeito, como ainda fortalece a posição de quem já é suficientemente bem remunerado para desempenhar as funções que desempenha, e para as quais nem foi eleito, ou sendo eleito foi sem se submeter ao sufrágio universal e directo? E que não sendo para isto que lhes pagam, ainda querem ser mais bem pagos? Sei lá, chamem-me de maluco, mais aos 20 mil tipos que barafustaram contra esta propesta de lei no Domingo, mais aos outros que estiveram hoje nas imediações da Assembleia Legislativa, e em quem estranhamente as autoridades não se atreveram a encostar um dedo? Isto noutro dia dava pelo menos para deter o Jason Chao, mais o maluco do Lee Kin Yun e os seus amiguinhos, e deixá-los a "secar" duas ou três horas na esquadra.

O problema é que a proposta de lei é, de um ponto de vista meramente técnico, uma cagada. Desculpem lá se vos estou a roubar tempo, mas convido a que leiam na integra o conteúdo daquilo que ia ser hoje votado, e que foi "abençoado" por 28 alminhas em finais de Dezembro passado. Podem fazê-lo aqui, clicando no "aqui", em negrito, e não custa nada, pois são apenas 20 artigos. Já leram? Gostaram? Eu também não, mas valeu a pena, não valeu? É uma proposta que, ao contrário do que dizem os "especialistas em Direito torto", não é comum a outras jurisdições. Bem, talvez até seja, mas não sei se poderíamos chamar a isso "jurisdições", pelo menos conforme o significado específico de "juris". Esta é uma proposta que dota os titulares dos principais cargos públicos de regalias equiparadas apenas ao sultão do Brunei. Se é "atractiva para os novos talentos", como defendem alguns? Eu diria mais: é atractiva para qualquer um. Quer dizer, quem é que recusaria um sem número de mordomias em troca de meia dúzia de anos de serviço público, que como o nome indica, deveria ser efectuado com o propósito de servir a população, e não tirar um "jackpot" da roleta do erário público?

Alarmante é sem qualquer margem para dúvidas o artigo 4º, que isenta o Chefe do Executivo de qualquer ilícito, seja ele qual for, seja ele em que circunstâncias ou de que natureza. A maioria da malta pode não ter formação jurídica, mas não é analfabeta de todo - algo como "O procedimento penal não se aplica ao Chefe do Executivo durante o seu mandato" significa em qualquer dos casos que o CE está acima da lei. Ou seja, durante o seu mandato, o CE pode muito bem chegar ao pé de alguém no meio da rua, rebentar-lhe com os miolos, e ainda recebe uma vénia de quaisquer eventuais testemunhas, que lhe dirão qualquer coisa como: "bons olhos o vejam, sua excelência, volte sempre e rebente com os meus miolos, também". Estou a ser parvo? Não há nada naquele diploma que refute ou redima aquilo que acabei de dizer. Quando o sr. deputado Leonel Alves diz que esta medida serve para prevenir que o CE "seja nomeado arguido ao mesmo tempo que exerce funções". Pois, isso já percebemos, agora fica por explicar o porquê o facto de se ser CE isenta alguém de cumprir a lei como qualquer outro cidadão. Confesso, estou um pouco baralhado. Ainda quanto à defesa que o sr. deputado Leonel Alves faz do diploma, alegando que "é comum a outros países e territórios" ou que "devia ter sido aprovado na altura da implantação da RAEM". Bom, pode ser que o causídico tenha razão, e que deveria existir uma lei que salvaguardasse os interesses dos detentores de cargos públicos, mas nestes termos, e atendendo ao caso particular de Macau, parece desadequado, pelo menos em forma e em número. Se há algo em que concordamos é sem dúvida o "timing", pois aprovar uma lei destas quando faltam seis meses para alguns dos tais detentores dos cargos públicos cessarem funções, parece estranho - já era difícil de engolir, mas assim torna-se absolutamente intragável.

Não é preciso ter formação jurídica para entender que há algo de muito errado neste diploma cuja votação final foi hoje adiada, uma decisão que deixou em estado de alerta as altas esferas da RAEM, e deixou a gaguejar alguns dos que inicialmente apoiavam a proposta, e outros a fazer tristes figuras, imediatamente condenadas pela mole agora desperta - e atenta. Agora não há forma de adiar o que não tem data que a torne aceitável, ou alterar o que de raíz está mal feito: é preciso deixar cair, admitir que se errou, e olhar em frente, e quem sabe no futuro "emendar" o erro, e esperar por uma oportunidade melhor para preencher esse vácuo legislativo de outra forma que não esta, tão brutal e declaradamente tendenciosa. É que aqui não há o cordel do patriotismo que ajudou a passar a legislação do artº 23 da Lei Básica; aqui trata-se do dinheiro que é de todos, e se estão a pensar em deitar-lhe a mão, façam-no com jeitinho, sem barulho e sem estragar nada, ok? Ninguém leva a mal se admitirem o erro, e só os burros é que são assim tão teimosos. Só uma curiosidade: agora que este caso transbordou e chegou à imprensa estrangeira, o que pensará Pequim de tudo isto? A rir de gozo é que não devem estar, com toda a certeza.





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