quarta-feira, 28 de maio de 2014

Pode ser que... - análise (a)política


O último Domingo poderá ficar para a história de Macau como o dia da tempestade que deixou à deriva a nau da governação. A nau "Harmonia", habituada a navegar em águas calmas à beira-rio, aventurou-se no Grande Oceano da Legislação Descabida e Inoportuna, e foi atingido de frente por vagas gigantes que o engoliram, encontrando-se agora à deriva em parte incerta, qual avião da Malaysia Airlines. Enquanto não se sabe bem se os náufragos estão numa qualquer ilhota que não vem no mapa e que os radares teimam em não captar na sua frequência, ou se foram transportados para outra dimensão, especula-se não sobre o paradeiro do "Harmonia" e da sua tripulação, mas sobre o seu futuro, e sobre as consequências de ter mandado a frágil nau e os seus marinheiros de água-doce para um Cabo das Tormentas, onde desprezando o Adamastor que ali morava, foram sacudidos a um ponto que fez a viagem do Titanic parecer "O Piquenique no Bosque" de Édouard Manet. Do muito que se disse - e todos meteram a sua colher no pudim desta tragédia em tantos actos que já lhes perdi a conta, interessa ouvir a opinião dos "politólogos" E já passo a explicar as comas.

Agnes Lam foi das primeiras a fazer o diagnóstico, logo no mesmo dia que os manifestantes sairam à rua. Sentada na sua zona de conforto, ostentando um penteado que me fez lembrar Tilly Losch, a Condessa de Carnarvon, disse aquilo que toda a gente já sabia. Sim, nós também vimos, e sabemos que a malta estava insatisfeita com o tal diploma, e que tal dizer qualquer coisa de novo, sei lá, uma opinião sobre o que vai acontecer a seguir, ou os números do "mark-six" da terça-feira a seguir, enfim, algo. Agnes Lam desilude-me cada vez mais, e já sei que sou suspeito, mas o que quer a menina, afinal? O que procura quando se candidata à AL, se tudo o que faz é, como se diz no calão local, "só fálá"? As eleições, aquelas que temos, que são bem pobrezinhas eu sei, ganham-se nas ruas. Para mandar postas de pescadas já lá eles têm muitos, a aparentemente a inteligência ou as noções de ciência política não são um requisito. O que continuo sentir quando oiço Agnes Lam é que ali está alguém que o Executivo podia usar cada vez que é necessário uma operação de charme, mas não faz porque se está (ou estava) nas tintas para o "charme" - como ficou provado aliás na pantomimice de Lam Heong Sang - e Agnes Lam também não parece ter calibre para fazer papel de "apaga-fogos", como faz Leonel Alves. O próprio deputado macaense parece estar rodeado de chamas, num verdadeiro "Towering Inferno", e em vez de uma mangueira deram-lhe um borrifador.

Dos restantes ouvimos ainda Larry Sou, outro "habitué" destas tertúlias analíticas, alguns ecos da imprensa estrangeira, muita opinião da imprensa local, sobretudo crítica, e dá a entender que ninguém está muito preocupado em sair em defesa do Executivo, e na melhor das hipóteses apontam-lhe onde errou. O pior é que "errar" não é bem o termo. Quer dizer, "errar" é mandar a bola para canto quando o guarda-redes está prestes a segurá-la; isto é um auto-golo no último minutos dos descontos, quando a equipa ganhava, e ser eliminado na diferença dos golos marcados fora de casa. E talvez na sequência do descalabro total, veio hoje Eilo Yu, em cima na imagem, dizer aquilo que muita gente já pensava e comentava em surdina: Chui Sai On colocou em cheque uma reeleição que parecia mais que garantida, e é bem possível que Pequim escolha um segundo candidato, ou então, horror dos horrores, OUTRO candidato. Isto seria um golpe no segundo sistema, que já por si está inserido na categoria de "meramente ornamental", e um atestado de incompetência aos intérpretes do pressuposto sacrossanto do "elevado grau de autonomia". Não surpreende portanto que a postura da elite dirigente da RAEM seja de retração total, tão defensiva que já não via nada assim desde a detenção do ex-secretário Ao Man Long. Afinal parece que a tão aguardada (e tardia) remodelação governamental vai ser mesmo feita, e pode ser que seja à vassourada. É pena, realmente.

Agora passo a explicar as comas em "politólogo" no final do primeiro parágrafo. É assim: em Macau não há política, pura e simplesmente, e isso fica agora mais uma vez provado. Em política temos eleições, aqui temos distribuição de mandatos. Em política há debate político, enquanto que aqui temos chincana, e nem chega a ser política. Em política temos políticos que resolvem problemas, a bem ou mal, fazendo política, e aqui temos tecnocratas semi-qualificados que delegam às acessorias o trabalho que devia ser feito por eles, ou pelo menos tentar participar mais directamente nesses trabalhos. A política é uma coisa pública, que requer a participação de todos, não é um palavrão nem um bicho de sete cabeças, e em vez de termos "opinião pública" temos um público que não tem nem quer ter opinião - desde que hajam papas e bolos, não se importam de ser os tolos. "O que é, saber de política enche a barriga a alguém, é? Olha lá ó tu, se sabes tanto de política, porque é que não vais também para lá, uh? Toma, que agora é que eu te apanhei". E os nossos pseudo-políticos aproveitam-se disto para dizer que sim senhor, é verdade, a política é uma coisa muito feia, que cheira muito mal, e o melhor é não se meterem nisso. Sabem o que eu oiço dizer dos rapazes destas associações que têm saído para a rua nos últimos tempos? Coisas como "não devem querer arranjar emprego em Macau", por vezes seguido de uma outra "boca" do tipo "aquilo já é um emprego!", ou ainda elaboradas teorias da conspiração, do género "são pagos por potências estrangeiras para desestabilizar", e soluções do tipo "rolha", como "querem é dinheiro, dêm-lhes dinheiro que eles calam-se". Portanto aqui qualquer coisa que se assemelhe a política ou esteja relacionada com política é proibitivo, e pensar pela própria cabeça é perigoso. Portanto, esclarecidos que estamos da ausência de política, permitam-se uma análise completamente apolítica da situação.

O que me parece que Chui Sai On e este executivo acabaram de fazer é o que chamam normalmente onde existe política de "suicídio político". Por muito legítimo e justo que fosse este diploma, e não é nem uma coisa nem outra, o "timing" foi uma desgraça. Nem sei como é possível alguém se ter lembrado de levar à apreciação do ramo legislativo do sistema uma proposta desta natureza quando: 1) faltam menos de seis meses para e eleição do Chefe do Executivo e 2) o conteúdo da lei é tão obtuso e o seu objecto tão selectivo que não pode nunca ser ignorado ou desprezado pela população, que logicamente não vai gostar de saber do que se trata.

Quanto ao ponto 1, como é que vai Chui Sai On aparecer em Novembro perante o Colégio Eleitoral? Vai ser aclamado? Eleito por unanimidade e aplaudido de pé? Talvez, já nem digo nada, pois não existindo política, tudo é possível, mas caso encontre uma solução milagrosa, duvido que isto aconteça. Para já começou muito mal, ao recusar o pedido dos organizadores do protesto de Domingo para um encontro. Que sinal está o CE aqui a mandar? Que está num pedestal, ou que a voz de vinte mil residentes não é importante quanto baste para ser escutada e atendida? Psrece-me que ao contrário de Edmund Ho, Chui Sai On está bastante desamparado, e tem alguma falta de tacto. O seu antecessor era cuidadoso com os passos que dava, olhava sempre por cima do seu ombro, preocupava-se em manter uma relação de proximidade com a imprensa, e sempre que necessário, com a população. Chui, por outro lado, terá cometido o erro de pensar que neste particular o trabalho tinha ficado todo feito por Edmund Ho, e que o seu cargo era meramente temporal. Ou seja, sentiu-se no comando de uma equipa tão rotinada que joga sozinha, e nem precisa de treinador. Não entendo o alcance desta presunção, e reparem que eu ia dizendo "alcance político", mas fui a tempo de não dizer uma asneira. Qual é o objectivo final da governação de Chui Sai On? Que medidas tomou ele durante estes cinco anos que tivessem impacto para o presente ou eventualmente para o futuro de Macau. Pronto, digamos que fez bem em deixar as coisas em piloto automático, e assim também não se perdeu nada, e para que isto seja possível é preciso ignorar os problemas que só não foram resolvidos, como ainda pioraram, como os da habitação, da inflação ou do acesso a cuidados de saúde pública. Mas...e agora? Isto também não é nada? Será mesmo possível deixar as coisas se acalmarem e depois aprovar o diploma "suavemente"? Não seria isso menosprezar a população da RAEM?

Segundo ponto: este diploma não tem nexo no que diz respeito à salvaguarda dos interesses de seja quem for. Isto mais parece um daqueles contratos milionários que alguns jogadores de futebol a de topo assinam, e depois de sabermos dos termos exclamamos "o gajo está garantido, e não precisa de fazer mais nada na vida". Chega a assustar quando se vê tantas figuras a chamar a atenção para a importância de aprovar este diploma; fosse eu mal intencionado, e pensava que vinham aí núvens bem negras de temporal, e há por aí quem tendo acesso às imagens de satélite, comece já a arranjar um abrigo antes que chegue a primeira trovoada. Que desespero leva a que uma associação que tem no hemiciclo dois deputados eleitos pela via directa leve a cabo uma farsa como aquela de Domingo, onde recrutou um grupo de gente analfabeta para alegadamente "demonstrar o apoio" da população ao diploma agora suspenso? E já agora gostava de mandar um recado a um certo sr. deputado, elemento bem conhecido da nomenclatura: quem não estava na manifestação não significa necessariamente que apoie a lei; por amor de Deus, já não viu o resultado que dá tomar as pessoas por burras e débeis mentais? Não se atreva sequer, sr. deputado Tsui Wai Kwan. O argumento de que assim se estão a "atrair talentos" é risível; o que se está a atrair é gente acomodada, está-se a fomentar o clientelismo, e a incentivar o nepotismo. E afinal, quem escolhe os titulares dos cargos que vão depois usufruír destas regalias? Existem mecanismos que levem a avaliar se estão a fazer ou não um bom trabalho, se merecem uma "reforma dourada" ao fim de seis anos em funções? Alguém acredita que o CE, qualquer um dos secretários, dos comissários ou dos comandantes que cessem funções vão andar por aí a entregar currículos ou a bater às portas a pedir "ó tio, ó tio"? Querem mesmo fazer crer que estes titulares dos altos cargos após abandonarem funções andam por aí à míngua? Portanto, para salvaguardar o quê, exactamente? Qual é a urgência deste diploma, e qual é o seu impacto imediato - ou qualquer outro, para esse efeito - na população? Isto leva-me à última parte deste já extenso comentário completamente apolítico, mais em jeito de desabafo que outra coisa: o papel do sr. deputado Leonel Alves, pessoa que muito estimo, mas que me deixa completamente perplexo com a sua defesa deste diploma.

Primeiro concordo com tudo o que diz no que toca ao fundamento que leva a que se aprove uma proposta de lei desta natureza. Sim, existe em todos os países, os próprios ex-presidentes da República Portuguesa usufruiem de regalias que ainda hoje vigoram, advindas dos seus préstimos à nação, sim senhor, tudo bem. Mas agora permita-me que lhe diga apenas uma palavra para cada um dos inflamados argumentos que apresenta em defesa desta lei: "porquê?". 'É fundamental legislar neste sentido, tal como se fez noutras jurisdições, de modo a dotar os titulares dos altos cargos públicos de garantias quando cessem funções'. Sim, sim, mas porquê? 'Esta lei devia ter sido aprovada no momento da criação da própria RAEM, juntamente com a aprovação dos estatutos da Lei Básica'. Certo, mas não foi porquê? E só agora, porquê? 'Esta lei é essencial para salvaguardar os interesses tanto dos actuais como dos futuros diregentes da RAEM'. Essencial...porquê, exactamente? 'Não faz sentido nem convém que o Chefe do Executivo seja constituido arguido durante o exercício do seu mandato'. Pronto, já chega, mas neste caso, não sei se faz sentido ou não, mas sem dúvida que não seria lá muito conveniente ter o CE acusado de um crime enquanto desempenha funções, mas permita-me aqui o maior dos porquês: que razão nos leva a pensar que alguém que vá desempenhar o cargo de Chefe do Executivo, primeira figura da RAEM poderia ser acusado de um ilícito? Não seria ideal confiar que foi indigitado para o cargo uma pessoa com uma elevada probablidade de não deixar isso acontecer? Temer o quê? E se não podemos confiar no CE, confiamos em quem? E já agora, sr. deputado Leonel Alves, porquê? Porquê o quê? Você sabe o quê. Eu é que não entendo...porquê.





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