quinta-feira, 15 de maio de 2014

A caminho do Brasil: Com quatro letrinhas apenas...


Pelé, "o rei", junto do seu pai Dondinho, ele próprio um ex-futebolista.

Ontem falei aqui do "Maracanaço", a humilhante derrota do Brasil no jogo decisivo do mundial de 1950, que causou ondas de choque em todo o país, deixando os seus apaixonados adeptos em prantos. Algures no sul do estado de Minas Gerais, num lar da pequena cidade de Três Corações, um homem chorava, como qualquer outro brasileiro nesse dia. Foi aí que o seu filho de nove anos lhe pôs a mão no ombro e disse: "Não chora não, papai. Um dia eu ganho a copa para o Brasil". E o pequenote cumpriu a sua promessa, vencendo não uma, mas três taças do mundo para o "seu" Brasil. O seu nome era Edson Arantes do Nascimento, que mais tarde viria a ser conhecido pelo nome que todo o mundo sabe dizer: Pelé. O seu pai, João Ramos do Nascimento, conhecido por Dondinho, foi ele próprio futebolista profissional, tendo alinhado pelo Atlético Mineiro, Flamengo e finalmente o Bauru, do estado de S. Paulo. Agora que penso bem, pode ser que nem estivesse na sua cidade-natal a chorar a derrota do seu país nessa copa de 1950, pois nessa altura jogava pelo Bauru. No entanto a história é completamente verídica - pelo menos segundo o próprio Pelé.


Pelé nos bancos da escola, fora do seu ambiente, mesmo assim sorridente.

E foi exactamento no Bauru que Pelé começou a dar os primeiros pontapés na bola, e desde cedo que se percebeu que era um pequeno-grande prodígio. O diminuto clube foi campeão estadual de juniores três anos consecutivos entre 1954 e 1956, e o treinador Waldemar de Brito - conhecido como "o homem que descobriu Pelé" - levou-o a treinar nos "gigantes" do Santos, em S. Paulo, onde se afirmou imediatamente na equipa sénior. A sua estreia deu-se a 7 de Setembro de 1956, a mês e meio de completar 16 anos, e marcou o primeiro dos seus 1281 em vinte anos de carreira, numa goleada de 7-1 ao Corinthians de Santo André. Tornou-se titular indiscutível - mais do que isso, "indispensável", e em 1958 foi o melhor marcador do campeonato paulista, com 58 golos, um recorde
que se mantém até aos dias de hoje.


O "dream team" do Brasil de 1958, com Pelé em baixo, ao centro.

Era inevitável que fosse chamado à selecção, que nesse ano ia disputar o mundial na Suécia. Apenas com 17 anos, era a "cereja no topo do bolo" de uma selecção que contava com o mítico guardião Gilmar, uma defesa com Nílton Santos, o único "sobrevivente" do Maracanaço, Djalma Santos e o capitão Bellini, um meio-campo onde pontificava o botafoguense Didi, o inventor do remate em "folha-seca" na marcação dos livres, ou Zito, o "volante" que segurava a meia área do Santos, e uma linha avançada que era a inveja de qualquer equipa, com Mário Zagallo, Mazzola, Vává, e além do próprio Pelé, aquele que era já considerado o melhor jogador do mundo na altura: Mané Garrincha.


O Brasil ficara colocado no Grupo 4, com a Áustria, Inglaterra e União Soviética - três equipas europeias. O primeiro jogo foi no dia 8 de Junho contra os austríacos em Uddevalla, no Estádio Rimnersvalla, e o "escrete" venceu por 3-0, com dois golos de Mazzola e um de Nílton Santos. Mazzola sairia depois desse mundial para os italianos do Milão, onde se viria a naturalizar italiano, participando no mundial seguinte, em 1962, com o nome de Altafini. A 11 de Junho em Gotemburgo o Brasil empataria a zero frente à Inglaterra, naquele que seria o primeiro encontro sem golos em fases finais dos mundiais. A 15 de Junho, outra vez em Gotemburgo, é a vez da União Soviética, e o treinador Vicente Feola decide apostar finalmente em Pelé. O jogo termina com a vitória do Brasil por 2-0, com dois golos de Vává, mas o pequeno grande talento do Santos dá nas vistas. Brasileiros e Sovietes seguem para a fase seguinte.


Nos quartos-de-final Pelé "abre o livre", marcando o único golo do encontro contra o País de Gales, com os britânicos a praticar um futebol duro, com a bola pelo ar, tentando assim contrariar a maior técnica dos brasileiros. Nas meias-finais o "rei" apresenta ao mundo as suas credenciais, marcando um "hat-trick" contra a França, na vitória por 5-2. A final seria jogada a 29 de Junho no Estádio Råsunda, em Solna, contra a equipa da casa, a Suécia. Os escandinavos começaram melhor, e adiantaram-se no marcador aos 4 minutos, por Nils Liedholm, mas a festa duraria pouco tempo, pois Vává empataria aos 9 minutos, e aos 32 bisava, deixando o resultado ao intervalo em 2-1 para o Brasil. Na segunda parte foi o "show" Garrincha-Pelé, com o "anjo das pernas tortas" a trocar os olhos à oposição, e Pelé a marcar; fê-lo aos 55, com Zagallo a apontar o quarto aos 68, e aos 90, já depois de Simonsson ter feito o segundo para os suecos. Estava vingado o "Maracanaço" oito anos antes, e a glória de Garrincha e Pelé chegavam à mais pequena aldeia do Brasil. Seria a primeira e até agora única vez que uma equipa não-europeia vencia um campeonato do mundo realizado na Europa.


O Brasil de 62, bi-campeão mundial, (quase) sem Pelé.

Pelé continuaria a brilhar a nível interno, marcando golos atrás de golos, que valiam ao Santos o domínio tanto no Brasil como na América do Sul. Vitórias na Libertadores de 1960 e no ano seguinte despertavam o interesse de grandes emblemas europeus pelo craque, mas foi impedido de sair, por ser considerado "tesouro nacional" - um pouco como aconteceu mais tarde com Eusébio, durante o regime de Salazar. Foi em grande forma que Pelé chegou ao mundial de 1962, realizado no Chile, numa equipa que contava novamente com Zagallo, Vává, Zito, e claro está, Garrincha, o "pulmão" do "escrete". Depois de uma vitória inicial por 2-0 frente ao México, com golos de Zagallo e Pelé, o "rei" lesionava-se com gravidade na segunda partida frente à Checoslováquia, numa partida que terminaria empatada a zero. O substituto na linha avançada seria Amarildo, avançado do Botafogo, que logo na estreia marcaria os dois golos da vitória frente à Espanha por 2-1. O Brasil venceria a Inglaterra nos quartos por 3-1, com dois golos de Garrincha, 4-2 a equipa da casa, o Chile, com mais dois de Garrincha e outros tantos de Vává, e reencontraria a Checoslováquia na final, e desta vez, mesmo sem Pelé, venceria por 3-1, com golos de Amarildo, Zito e Vává. Foi o segundo título do Brasil, e o segundo de Pelé, mas soube pouco para o "rei", que precisou de assistir da bancada à magia de Garrincha, Vává e Amarildo, que juntos marcariam 11 dos 14 golos da "canarinha".


Os anos 60 continuavam a decorrer em grande estilo para Pelé, que dominava nos relvados da mesma forma que os Beatles dominavam na música, e ambos concorriam para o posto de "mais famosos que Jesus Cristo". E seria no país dos Beatles que o "rei" chegava em 1966 com a sua comitiva para defender os dois títulos mundiais conquistados na Suécia e no Chile. Apoquentado por uma lesão, Pelé sabia que não seria fácil fugir da carga das defesas adversárias, e o Grupo 3, onde o Brasil ficaria incluído, continha os "magiares", a Hungria, que tinha dado boa conta de si nos mundiais anteriores, Portugal de Eusébio e companhia, e a Bulgária, uma equipa jovem que dois anos depois obtinha a medalha de prata nos Jogos Olímpicos do México, e chegaria aos quartos-de-final do Europeu. As coisas até não começaram mal para os brasileiros, com uma vitória por 2-0 contra os búlgaros no Goodison Park em Liverpool, com golos de Pelé e Garrincha, enquanto Portugal batia a Hungria por 3-1 em Old Trafford. A vitória contra a Hungria poderia significar um domínio luso-brasileiro do grupo, mas os "magiares" tinham outros planos, e venceram por 3-1, enquanto Portugal batia a Bulgária por claros 3-0. Seria novamente no Goodison Park, a 19 de Julho, que tudo se decidia: o Brasil estava obrigado a vencer Portugal se quisesse seguir em frente, e Pelé estava nas últimas; o joelho esquerdo, que tinha chegado assim-assim a Inglaterra, começava a pedir repouso. Sabendo disto, a selecção portuguesa tomou uma postura ofensiva, e com marcação cerrada ao génio Pelé, que a qualquer momento podia decidir o jogo. Depois do 2-0 de Eusébio aos 27 minutos, na sequência do golo inicial de Simões aos 15, o defesa João Morais, o tal do "cantinho" que deu ao Sporting a sua única taça europeia contra o MTK na Taça das Taças em 64, resolve "arrumar" Pelé, aplicando-lhe dois golpes de "karate" ainda antes do intervalo, obrigando o brasileiro a abandonar o relvado em ombros, mas pelos piores motivos - não conseguia colocar os pés no chão. As "agressões" seriam atribuídas inicialmente a Vicente Peres, defesa do Belenenses que havia ficado encarregado por Otto Glória de marcar o jogador mais perigoso do Brasil, mas seria Morais a aplicar o "golpe final". O Brasil perderia por 1-3, e pela única vez no sistema de fase de grupos, a "canarinha" seria eliminada prematuramente.


O selo comemorativo do 1000º golo de Pelé, emitido em 1969.

Depois deste atribulado mundial, e apenas com 25 anos, Pelé decidiu não participar em mais nenhum, afirmando, em declarações que ficaram famosas, que "preferia sair pelos dois pés, e não de cadeira de rodas". No entanto os anos que se seguiram correram bem, Pelé estava no auge da sua forma, e preparou-se intensamente com vista ao mundial de 1970, que se iria realizar no México. Uma das técnicas que aperfeiçoou foi a dos pontapés de bicicleta, assim como os remates de meia distância, insistindo ainda nos seus clássicos e oportunistas lances de cabeçeamento na sequência de pontapés de canto, onde era quase imbatível. Em 1969, a 19 de Novembro, registava-se um momento histórico: o milésimo golo, obtido no Maracanã contra o Vasco da Gama, de penalty. Tinha que ser de penalty, para que pudesse ficar registado. E assim o "rei" seguiu com a sua comitiva para o México, naquele que seria "o seu mundial".


O "escrete" do mundial de 1970, o Brasil "de Pelé" - para muitos a melhor selecção de toda a história.

E assim a 31 de Maio, e até 21 de Junho, tinha lugar a nona Taça do Mundo. Mais cedo que o habitual, para acomodar os rigores do calor mexicano, numa competição que toda a gente sabia ser paga do bolso de interesses "yankees" - os relvados mexicanos eram os únicos capazes de acolher os jogos neste primeiro mundial com organização da CONCACAF. O Brasil estava no grupo da Inglaterra, uma velha conhecida, assim como a Checoslováquia, adversária da final de 62 e contra o qual Pelé se lesionara na fase de grupos, e a Roménia. Os checos "dançaram" ao som do samba na ronda inaugural, com Pelé a marcar o segundo da vitória por 4-1. A equipa do leste europeu ainda ousou desafiar o Brasil com um golo aos 11 minutos, mas Rivelino empataria antes do descanso, ed depois dO "rei" deixar a sua marca aos 60 minutos, Jairzinho acrescentava mais dois ao pecúlio. Seguiram-se os ingleses, campeões do mundo em título - seria difícil de imaginar no sistema de cabeças-de-série implementado na actualidade ter os campões do mundo das últimas quatro competições no mesmo grupo. Ainda com o "balanço" de 66, a Inglaterra fez pela vida, ficando tudo decidido com um golo de Jairzinho aos 59 minutos. Já com o apuramento garantido, veio a Roménia, e uma vitória descontraída por 3-2, com dois golos de Pelé e mais um de Jairzinho, que parecia ser o concretizador da obra do seu mestre, o camisa 10 da "canarinha".


Chegar à final foi uma formalidade, e poucos se podem orgulhar hoje em dia de se sagrarem campeões mundiais marcando 11 golos nos últimos três jogos. Foi o que aconteceu com este Brasil, que passeou-se nos quartos-de-final contra o Perú com 4-2 (Tostão 2, Rivelino e Jairzinho), ajustou contas frente ao Uruguai, velhos conhecidos de vinte anos antes no célebre desastre do Maracanã, vencendo por 3-1 nas meias (Clodoaldo, Rivelino, Jairzinho), e para terminar em beleza, 4-1 contra a Itália na final, com Pelé ao leme, marcando o primeiro, para Gérson, Jairzinho e Carlos Alberto fazerem os restantes. Os italianos estavam desgastados da meia-final frente à Alemanha, um episódio de que falarei em breve, mas era muito difícil a fosse quem fosse travar este Brasil "de Pelé", do ano que já sem Garrincha como "estratega", seria ele a levar em ombros o seu país a mais um título. O "seu" Dondinho sorria, e certamente que estaria emocionado. O seu menino que aos 9 anos lhe tinha prometido o título mundial, acabava por lhe oferecer o terceiro. Até hoje Pelé é o único jogador a conquistar o "tri". É o "rei", portanto, ponto final.


Pelé no tempo em que jogava nos New York Cosmos, junto com Eusébio, dos Las Vegas Quicksilvers.

Depois do mundial de 70, que seria o seu último, Pelé gozou mais alguns anos de glória no "seu" Santos, e quando as pernas se começaram a tornar demasiado pesadas para o competitivo futebol brasileiro, o "rei" saíu pela porta grande, e foi até aos Estados Unidos, onde se fazia uma primeira tentativa em promover o "soccer", fazer um pé-de-meia que o ajudasse à reforma. A verdade é que mesmo depois de terminar a sua carreira como futebolista aos 36 anos, Pelé nunca foi esquecido, e tornar-se-ia por direito próprio o símbolo por excelência do desporto-rei, mantendo-se até hoje como embaixador da FIFA. Com a organização do mundial pelo Brasil neste ano de 2014, volta a ter protagonismo, e todos os brasileiros que vêem nele o seu imperador, vão querer certamente festejar mais uma conquista, desta vez em casa. Depois de Pelé, o Brasil só voltaria a ser campeão 24 anos depois - o maior período desde a primeira conquista de um mundial. E é do caminho até ao "penta" que falaremos amanhã. Fiquem atentos!


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