sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Liberdades, parte I: liberdade de imprensa


A Federação Internacional de Jornalistas (IFJ, na sua sigla inglesa) divulgou esta semana o relatório da situação quanto à liberdade de imprensa na China, e deu nota negativa às duas RAEs de Macau e Hong Kong. Deste lado do delta do Rio das Pérolas a IFJ fala ainda da prática de "auto-censura" pelos parte dos profissionais da imprensa em línguas portuguesa e inglesa, o que originou uma reacção do presidente da associação que os representa (AIPIM), João Francisco Pinto, que considera o relatório "incompleto", e "não reflecte a totalidade da situação em Macau", acrescentando que nem ele nem ninguém da associção foram consultados pelos autores do estudo. O jornalista contou à Rádio Macau que a AIPIM apresentou uma proposta de adesão formal à IFJ, que depois ter adiado a decisão alegando "estar a investigar a idoneidade do requentente", nunca deram uma resposta. Contudo a opinião generalizada é de que na China a imprensa continua sob a apertada fiscalização do estado, e que a imprensa em língua chinesa de Macau e Hong Kong sofre mais pressões da parte dos meios políticos do que a estrangeira.

Penso que não estarei a ser injusto ou a atentar contra o bom nome de ninguém se disser que a opinião generalizada que a população tem dos media de Macau é negativa. Sim, e se eu falo pela população é porque escuto o que ela diz, e até hoje nunca ouvi da boca de ninguém uma opinião que não vá no sentido de dizer que o Governo controla os meios de comunicação social, e vigora a ideia de que a independência dos media na RAEM é praticamente nula. Aqui o poder político não precisa sequer de exercer qualquer tipo de vigilância: basta ver quem compõe o quadro da direcção da televisão pública, ou a intimidade (para não dizer promiscuidade) entre o jornal mais lido do território e alguns elementos importantes ligados ao Governo. Isto é e sempre foi assim - Macau não tem um mercado para que um jornal consiga sobreviver exclusivamente do número de cópias vendidas, ou que a televisão subsista à conta da publicidade, que como é sabido, simplesmente não existe. No entanto este "casamento" entre aquele que há foi em tempos chamado "o quarto poder" e o primeiro já conheceu melhores dias; os quatro incidentes referidos no relatório da IFJ são motivo mais que suficiente para que não se possa fazer uma apreciação positiva da situação, por muito incompleto que o relatório esteja.

Em relação à imprensa em língua portuguesa, e deixo de lado a inglesa, cuja realidade ignoro quase na totalidade, vou abordar a questão de um ponto de vista comercial, e só isso. Portanto, se um jornal é um produto pelo qual é pago um preço para o adquirir, isso faz de mim um consumidor, e por inerência confere-me o direito de dar a opinião sobre a qualidade do bem pelo qual paguei. Compreendo muito bem que os meios ao dispôr dos jornais em língua portuguesa não são os mesmos que os dos grandes títulos na maior parte dos países, onde a publicidade ou os grandes grupos de empresários garantem a liquidez que os torna independentes, no todo ou em grande parte, do poder político. Talvez assim se justifique que em Macau um jornalista esteja em casa ou a beber um copo com os amigos pelas 10:30 ou 11 da noite, altura em que no continente americano, europeu e africano se faz a actualidade que no dia seguinte vai ser notícia nos media dos países dessa região do globo. Em Macau andamos meio-dia adiantados quanto aos fusos, e meio-dia atrasados em matéria de informação - até à chegada da internet, é claro. Aceito quando João Francisco Pinto diz "nunca ter sofrido pressões", e já não é o primeiro a dizê-lo. Mas sabemos que lá por ele não acreditar nelas, que las hay, hay, e se fala a título pessoal, é lógico que só poderia produzir esta afirmação. Com toda a certeza que não ia aproveitar o tempo de antena que lhe é reservado para dizer que "sim, existem pressões", e depois apelar ao público que "o salvem, por amor de Deus". Fez o que tem que fazer, enfim.

Entendo tudo isto, o que não consigo entender é uma certa arrogância e distanciamento que os profissionais da imprensa em português insistem em manter, e a forma como tantas vezes se julgam os donos da razão. Há coisas que estão à vista de qualquer pessoa que tenha dois olhos na cara para ver e nas imediações destes mais dois ouvidos para ouvir. Numa época em que a informação nos chega em catadupa através das redes sociais era importante a imprensa assumir o controle da qualidade da informação, e já que este novo concorrente alimenta-se do contacto com o público e deste retira, seleciona e publica o que por vezes pode ser entendido como "facto", mesmo que careçam de legitimidade no capítulo das "fontes" (coisa que a imprensa ainda alega em seu favor, mas não é bem assim), a imprensa acreditada poderia muito bem usar isto em seu favor, em vez de ficar a mastigar o azedume e depois retaliar com opiniões e interpretações absurdas de realidades que os menos aptos para o efeito identificam imediatamente como sendo desonestas, e impregnadas de ressabiamento. Mais uma vez: uma mentira premiada continua a ser uma mentira, e ao usar um espaço reservado à opinião e sinalizado como tal para produzir afirmações do tipo "a meu ver fulano tal é um criminoso" não iliba o seu autor ou autora de estar a fazer uma acusação grave. Existe um choque de egos inflados que não ficam bem a ninguém, nem às crinças de colo das mais birrentas, quanto mais a gente que se presume ser inteligente e bem informada.

Agnes Lam concorda com o relatório no que toca à prática da auto-censura, e a docente da UMAC vai mais longe ao afirmar que esta evidência é cada vez mais perceptível. E quem sou eu para duvidar, se o próprio dr. Neto Valente afirmou num documentário sobre os 15 anos da RAEM que os jornalistas locais praticam a auto-censura, no contexto de que em Macau não existe censura propriamente dita, ou uma figura que faça a escrutínio prévio da informação antes que seja divulgada ao público. O que existe, no meu entender, é algo ainda mais evoluído que a simples auto-censura. Para muitos jornalistas, especialmente os que só têm a experiência de trabalhar em Macau ou que o fizeram pouco depois de iniciar a carreira, existe um automatismo, uma prática reiterada que os leva a filtrar o que podem escrever e sobre quem podem escrever. Auto-censura implica não divulgar uma coisa que se sabe, mas que pode vir a causar dissabores no caso de ser tornado do conhecimento público. Ora se só o jornalista sabe do que se trata, e acaba por não tornar público, quem somos nós para assumir que ele sabe alguma coisa de todo? Podemos confrontá-lo com a verdade, com algo que sabemos de antemão que ele sabe mas que não divulga receando represálias, mas isso é uma questão pessoal, e não estamos dotados de poderes telepáticos para garantir que ele realmente tem conhecimento de algo importante que prefere não nos deixar saber, quanto mais para afirmar que ele fez uma ponderação cuidadosa quanto à forma de lidar com essa informação sensível a que alegadamente teve acesso?

Isto também me leva a pesar na balança mais um aspecto importante, que é o do acesso à informação por parte dos media portugueses, que ficam à mercê do Gabinete de Comunicação Social, e não raramente dependem de traduções, por vezes tardias e nem sempre fiéis à versão original. No entanto têm um mérito que é ao mesmo tempo uma futilidade, e a que já fiz referência neste artigo: têm a liberdade de fazer capas com notícias que a imprensa chinesa simplesmente ignora, pois mexem com personalidades influentes da vida do território. Fica bem ao governo apresentar este exemplo de "liberdade de imprensa" na hora de prestar contas às autoridades internacionais, e demonstrar assim que em Macau existe "espírito crítico". Podia existir, sim, e eles nem se importam que se fale mal, ou que se questione a competência deste ou daquele titular de um alto cargo, desde que o alcance seja dentro dos limites do que é actualmente, e que não cause a confusão no grosso da opinião pública, que ora está controlada, ora fica indiferente. A missão do jornalista reveste-se de mais ou menos responsabilidade conforme o meio onde se encontra, e se existe de facto a harmonia e a paz social que o Governo tantas vezes apregoa, tanto faz que diga bem ou mal dele, pois a opinião pública estará demasiado entertida a gozar os bons tempos para se importar com que a imprensa diz. Agora se os tempos são difíceis e o jornalista abdica da isenção inerente à sua função para assumir o papel de cúmplice, também lhe serão pedidas explicações, se chegar essa a hora.

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