quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Está impedido


Existia uma tira da Mafalda, a pequena politóloga fictícia criado pelo cartoonista argentino Quino, que era uma das minhas favoritas. A pequena Mafalda ouvia na rádio que "o Papa fez mais uma chamada à paz", e comenta em voz alta: "e como sempre, estava impedido". Delicioso, sem dúvida. O Papa, como lhe compete liga para a Paz, mas esta viva com um irmão que é cabaleireira e encontra-se actualmente no desemprego, e passa o tempo em que está acordada ao telefone com as restantes amigas desocupadas a cortar na casa alheia. Ah sim, e transportando isto para a modernidade, a Paz também não tem telemóvel, Facebook, Yahoo! Messager, QQ ou algo que a valha, porque a Paz é antiga, tão antiga, que tropeça na própria barba. Aliás a Paz nunca existiu. Se o Papa ligasse para um número da CTM à procura da Paz, ouvia sempre aquela mensagem "o número que marcou não se encontra registado", que escutamos sempre que ligamos para uma tipa giraça com quem rolámos no palheiro há uns meses e ficamos com vontade de pedir um bis, mas a ramelosa mudou de número ou pisgou-se de Macau sem nos dar cavaco.

Pois é, como "noblesse oblige" das suas funções de líder espiritual de mais de mil milhões de alminhas, o Papa Francisco apelou durante a sua mensagem de Ano Novo à "paz no mundo", dirigindo-se aos líderes mundiais para que se esforçem nesse sentido, porque epá, como dizia um chefe que eu tive que era óptima pessoa mas não tinha jeito para mandar em ninguém, "sejam amigos, vá lá, não briguem...". O Papa Francisco, e quem me conhece sabe que digo isto com 99,9% de sinceridade (os 0,1% restantes são a margem que dou à minha face negra da Lua), é um tipo bestial, e gosto muito dele. A sério, eu até o queria eleger Personalidade do Ano, mas a TIME já o fez antes de mim, e não penso que essa menção neste modesto blogue fosse ter alguma importância. Mas sim, gosto muito do senhor, e acredito plenamente na sua bonomia. É muito difícil fingir ser tão genuinamente bom, mesmo para um sacerdote católico. E olhem lá que eu sou um pagão de primeira apanha, do tipo que evitava ir à catequese com medo de levar nas orelhas. Pelo sim pelo não, nem sequer me baptizei.

O Papa Francisco é merecidamente a figura do ano. Sim, sem sombra de dúvida, pois alguém que conseguiu transmitir a sua mensagem como pessoa, de homem para homens e mulheres (e crianças que não estejam demasiado distraídas a olhar para a sua farda para o escutar), sem aquela aura intimidatória e sisuda do cargo que ocupa, que arrasta a voz como se estivesse prestes a entrar em êxtase divina (ou com prisão de ventre), é merecedor de todos os encómios. O homem que demonstra querer pegar na Igreja Católica e transportá-la para a modernidade, que considera que uma mãe solteira é antes de "solteira" uma "mãe", e que se atrevou a considerar os homossexuais seres humanos, uma atitude pioneira no seio da Igreja que lidera, é um senhor. Gosto especialmente quando telefona a um fiel para lhe responder a uma carta, esclarecer-lhe uma dúvida, prestart-lhe apoio ou dar-lhe bons conselhos. Até estou a pensar em escrever-lhe e dar-lhe o contacto de certas pessoas que se dizem católicas e cristãs mas adoptam uma conduta pouco condizente com estes valores. Mas agora, "paz mundial"?

Isto da "paz mundial" é algo em que nem o próprio Santo Padre, o nosso estimado Papa Chico, acredita. Julgo que até ele considera que a "paz mundial" seria algo de perigoso, monstruoso até, e no fundo impossível de realizar - não é a toa que só os "hippies" acreditam na possibilidade de existir "paz mundial", que é uma cena bué da marada e psicadélica. Poderia começar aqui a filosofar sobre a necessidade do equilíbrio, do "ying" e do "yang", de que o bem nunca seria possível sem a existência do mal, o prazer não seria prazer sem que se soubesse o que é a dor, e ninguém pode dizer que acabou de encher a barriga e ficou satisfeito se nunca tivesse passado pela fome. Quer dizer, a utopia de "paz mundial" só é possível graças à existência da guerra. Sem guerra nunca se podia falar em paz, sem ódio o amor nunca faria sentido, e no limite, só há morte onde existe a vida. São coisas que se complementam. É como a própria vida na Terra e o ciclo da natureza, que não seria possível sem a existência de todo o tipo de bactérias, fungos, protozoários e outros seres tão prejudiciais como essenciais à vida.

Será possível atingir o sonho da "paz no mundo"? Lá possível é, mas faz com que esse sonho perca todo o sentido. E não é muito lucrativo, diga-se em abono da verdade. Pode ser mesmo uma faca de dois gumes. Imaginem os que vão dizer os mercadores da morte, fabricantes e traficantes de armas perante a possibilidade de uma "paz no mundo"? "Ah sim, porreiro, vamos deixar de fabricar armas e deitar fora milhares de milhões de dólares por ano. Afinal já somos tão ricos". E os politicos, que são afinal os senhores da guerra? "Paz mundial? Vamos nessa. Já nem vou mais snifar esta coca dos seios destas duas modelos adolescentes da Playboy que tenho ali no Jacuzzi que comprei dos lucros do conflito em "x" sítio". E os que vivem dos salários que auferem nas fábricas da Uzi e de outras que fabricam armamento e do qual dependem as suas famílias? "Ah tudo bem, agora com isto da "paz mundial" vamos ser antes jardineiros e vender flores, que os gajos que antes andavam aos tiros vão começar a oferecer todos os dias uns aos outros".

É irrealista chegar à Paz mundial, meus caros. Vivemos da guerra, da violência e do ódio do mesmo jeito que vivemos de muitas outras desgraças. Quanta gente ia para o desemprego num mundo perfeito, sem dor e sem sofrimento? O que seria dos médicos se ninguém ficasse doente? Ou dos agentes da autoridade se ninguém violasse a lei? Os dentistas aconselham as melhores formas de prevenir as cáries, mas lá no fundo querem é que ande toda a gente com a boca a cair de podre. Por acaso vêem a indústria tabaqueira por aí a queixar-se pela campanha negra que é feita contra eles há décadas? Estão fartos de saber que haverá sempre alguém que fume, que consuma o seu produto, e onde se esgota um mercado, é só procurar outro. Paz no mundo? Sem armas, sem pistolas, sem balas, sem adolescentes Americanos passados que entram na sua escolar e massacram dezenas de colegas e professores, dando a mesma ideia a outros à beira do desatino que mais tarde vão fazer o mesmo? Sim, o presidente Obama queria "mexer" com a tal emenda que limita o acesso dos seus cidadãos às armas de fogo, mas qual foi a maior oposição que encontrou? Os seus camaradas do senado e do congresso, que engordam com o negócio mais lucrativo do mundo a par da droga.

Pois é meu caro Papa Francisco, a sua mensagem de Ano Novo é tão bondosa e bem intencionada como você próprio é, meu bom homem. Mas eu sei que nem você próprio acredita nela. Nas entrelinhas lê-se que quando está a pedir "paz no mundo" está no fundo a pedir-nos que tenhamos um bocadinho mais de juízo, enfim, pois sem um pouco de tino, que do modo que isto anda, qualquer dia acabamos com a nossa raça. Ele pede-nos isto assim de boca cheia, "paz no mundo", que é para ver se pelo menos lhe arranjamos alguma. Se pedisse apenas "um bocadinho de paz" ou "pelo menos alguma contenção", de certeza que não levava nada. A guerra, essa, é como o colesterol do bacalhau da última ceia de Natal: sabemos que está lá mas e depois? Se calhar sem este mal não sabia tão bem. Sim, gostamos todos de paz, especialmente à nossa porta, e os outros que se entendam, pois, que se matem, que se esfolem mas que não nos aleijem. Mais uma vez o Papa faz a tal chamada, mas o telefone está impedido. Seria de pasmar se não estivesse, que do outro lado a tal Paz atendesse.

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