domingo, 19 de outubro de 2014

O Adamastor, talvez...



Foi um Festival da Lusofonia com um sabor diferente, o deste ano, e por várias razões, das quais destaco duas ou três. Primeiro a 17ª edição desta festa que ainda é uma das poucas coisas que torna Macau um local especial e único como ponto de encontro de culturas - e digo isto sem a pompa do chavão de circunstância, por ser uma verdade insofismável - apanhou-me em baixo de forma. Quinta e sexta foram dias bastante cansativos do ponto de vista profissional, e nem o cancelamento de alguns pontos da minha agenda me deixaram actualizar o blogue, como também o cansaço me venceu por KO, optando por "hibernar" desde o fim da tarde do primeira dia da festa até à manhã seguinte. Mesmo no Sábado tinha aquela sempre desagradável sensação de que o corpo e a mente pediam mais repouso, e não terei ficado mais que duas horas no Largo do Carmo, quando habitualmente faço questão de ignorar a ditadura do tempo. Quem me viu deve ter reparado que não estava propriamente na melhor forma, pois talvez devido à persistente dor de cabeça e estado geral de desconforto não consegui apreciar a festa como sempre faço. Digamos que me "vinguei" hoje, Domingo, mas mesmo assim posso dizer que foi o ano em que menos tempo dediquei à romaria da Lusofonia. O facto de se realizar na Taipa dá-lhe um "elan" que de outra forma não teria, mas permitam-me que faça de advogado em causa própria e fique do lado dos que defendem a utilização do espaço da Doca dos Pescadores para o efeito. Parece-me uma ideia interessante, juntar o útil que seria dar um uso digno ao investimento de David Chow, e mais algum espaço ao Festival; podiam tentar nem que fosse só uma vez.

E falando da organização, não tenho nada a apontar, estava tudo tal e qual como nos anos anteriores, o que não constituíndo novidade de todo, sempre se vai mantendo o ambiente ideal para o convívio e para a troca de "galhardetes", e no fundo nem se trata de procurar oportunidades de investimento neste ou naquele país onde se fala português. Estamos fartos de saber que é apenas um "rendez-vous" das comunidades residentes em Macau originárias dos PALOP, Brasil, antiga India portuguesa e Timor-Leste, e sempre com Macau a "jogar em casa", claro. A satisfação que cada um retira é correspondente às suas expectativas, lógico, e quem preferir ficar em casa a ver o futebol ou a fazer outra coisa qualquer acompanhado de uma Super Bock que lhe custará cinco vezes do que no Festival, isso é lá consigo. Eu pessoalmente identifico-me porque o ambiente não difere em número e grau das festas populares realizadas em Portugal nas várias localidades do norte, sul e ilhas, quem sabe se num tom um pouco mais "exótico". Quanto à comunidade local, nomeadamente os chineses, são mais que bem vindos, e ninguém precisa de convite. Este evento é uma daquelas coisas que não "entra" pela casa de ninguém, e não se vai parar ali por acidente: quem foi tinha como finalidade lá ir, muito simples. Nos outros anos tinha visto alguns a passarem por lá timidamente, este ano pareciam mais interessados em participar. Ou seria em entender o que ali se passava? Nunca se sabe muito bem o que vai dentro daquelas cabecinhas, pois aplicando uma teoria que me foi adquirida pela "praxis", e recentemente acentuada, em Macau ninguém faz nada apenas "porque sim", ou porque acordou para ali virado.

E isto leva-me ao ponto principal deste artigo, que nos dois primeiros parágrafos é quase tirado a papel químico dos artigos dos outros anos dedicados ao mesmo tema, mas a diferença de que fui apanhado desprevenido pelo cansaço - diabos me levem, que só para chatear vou andar cheio de "pica" no próximo fim-se-semana e sem nada para fazer. E também por essa razão fiquei sem entender a polémica que envolveu a cerimónia de abertura do Festival, que devia ter sido realizada na sexta, mas foi antecipada para o dia anterior, aparentemente por motivos de agenda da sra. Secretária para a Administração e Justiça, Florinda Chan. Assim sendo as associações que organizam a feira largaram tudo o que estavam a fazer para ir "entreter" as figuras VIP que nos dão a sua benção, passando por lá uns momentos para nos dizerem "epá estamos aqui, não nos esquecemos de vocês" e tal. Acho até muito bem que o façam, pois não são obrigados a tal frete (caso seja assim que alguns entendem), e recordo ainda que muitas das individualidades do Governo e/ou empresários reservam sempre uma ou duas horas do seu tempo para ir brindar com o Cônsul-Geral de Portugal no dia 10 de Junho, quando nenhum compromisso a não ser o de amizade o justifica. Reparem que se fosse para "chatear" não iam, e bastaria alegar que a comunidade portuguesa "é apenas mais uma", apesar dos laços históricos e etcetera etcetera e alguns de vocês estarão a pensar agora que "não é bem a mesma coisa", mas isso da amizade e do convívio secular são tudo coisas imaterializáveis, no estado gasoso, e não se esqueçam que o discurso oficial da China passa sempre por considerar a presença de potências estrangeiras no seu espaço físico uma "humilhação". As palavras pesam mais para uns do que para outros, no fim de contas.

Só que quem não achou graça à alteração súbita do programa foi a presidente da Casa de Portugal, a dra. Maria Amélia António, que exerce a advocacia no território há qualquer coisa como 30 anos, ou mais, não sei ao certo. As imagens televisivas mostram uma reacção forte da parte da causídica e a dra. Florinda Chan a desculpar-se com tanta intensidade que dá a entender ir para lá do sincero, e com a preocupação de deixar claro que não foi intenção sua ou dos seus pares deixar ficar mal a organização, aparecendo de surpresa e interferindo na planificação da festa. Fosse eu mais caústico e dizia que me estava nas tintas para o caso, pois isto é próprio da feira de vaidades que antecede a feira propriamente dita, a do povo, e para a qual este não é convidado. Quem não esteja por dentro de quem é quem ou tenha perdido os episódios anteriores chega a ficar com uma má impressão da Dra. Maria Amélia António, que aparece visivelmente agitada enquanto do outro lado chegam desculpas e "paninhos quentes". Quem esteja do seu lado da presidente da CP não vai deixar certamente a "lebre" da conspiração ou da má vontade dentro da toca, e quem sabe se isto não tem um certo ar de "dejá vu", ou que se fique com a sensação de que já qualquer coisa do género aconteceu antes numa outra situação - e é boa altura para recordar uma polémica envolvendo a organização deste ano do Festival, que comentei aqui num post de 24 de Julho, que chegou mesmo a ameaçar a realização do evento. Olho agora para o que escrevi, e meu Deus, como há tanta coisa que muda em menos de três meses. Como a gente cresce e aprende.

A luz chegou na forma de farol incandescente no dia seguinte, na sexta-feira, na imprensa em língua portuguesa, na forma de declarações feitas "a quente" pela própria Dra. Maria Amélia António, e que passo a citar da trasncrição do Hoje Macau:

“Não tenho razão para duvidar da sinceridade dos desígnios que ouvimos do Governo e até do Governo Central. Mas que há muita gente a querer boicotar tudo isto, não tenho dúvidas. Isto tem sido sempre a piorar. Este ano atingiu o descalabro. Atingiu o descalabro quando eles não queriam fazer a festa como deve ser, quando não queriam os grupos aqui a actuar. É uma sequência, começou mal e continua mal”.

Reparem como destaco aquele "muita gente" ali no meio. É de facto estranho, que se a intenção do Governo local ou até do Governo chinês é no sentido de apoiar o Festival, existam assim tantos "sabotadores" a agir contra essa vontade. Não sei é assim tão óbvio que haja quem se arrisque a desobedecer ou ir no sentido oposto ao da nomenclatura. Agora permita-me o exercício do contraditório, minha cara presidente da CP, e vou adiantando que lhe teria dito isto há pouco, quando nos encontrámos no Largo do Carmo, não estivesse V. Exa. acompanhada. Não será "muita gente" mas apenas "alguém", ou quem sabe uma ou duas pessoas, e a intenção não será tanto a de boicotar ou impedir que o festival se realize. Se me pedissem para arriscar um motivo, diria antes que é para ficar a saber até onde vão os seus limites, o quanto você quer que o festival se realize. Esta é uma daquelas especificidades locais para a qual não encontramos tradução, e que venho observando há anos, testado em laboratório, e depois de muitas "explosões" na cara, consigo finalmente identificar mais ou menos este mal. Não é um mal sequer, nem defeito - talvez seja feitio.

O que me surpreende é a sua reacção tão intempestiva. Surpreende-me mas não me choca. Pessoas como a dra. Maria Amélia António, que não estão subordinadas a ninguém olham para este fenómeno de uma posição que não lhes permite ver o "palco" todo, e posso-lhe já ir assegurando que isto não acontece porque somos portugueses ou porque há por aí alguém que embirra connosco; aliás nesse particular até estamos dotados de uma certa imunidade, pois há coisas que são apenas para "consumo doméstico" e não estão ao alcance da nossa diminuta compreensão de bárbaros ocidentais. Posso-lhe ainda garantir que isto acontece um pouco por toda a parte, nos mais diversos quadrantes da da vida do território, e imagine só: se sentiu o "toque" numa ocasião em que precisou de colaborar e estar lado a lado com outras entidades, imagine o que é para os que vivem com isto todos os dias há anos a fio. Não é nenhum alerta, nem uma tentativa de incendiar seja o que for. É apenas um automatismo entre o conjunto de muitos outros com que nos deparamos todos os dias, e não fosse pelo facto de os encararmos como um "choque de culturas" já há muito que tinhamos abandonado qualquer forma de boa vontade ou de entendimento. Eu chamo-lhe "terrorismo psicológico", mas é um nome provisório, e se você quiser pode chamar-lhe de outra coisa. E que tal "Adamastor", uma vez que uma das suas características é inibir quem lhe aparece pela frente de fazer o que acha certo ou tomar uma iniciativa sem estar a olhar por cima dos ombros? Não tente entender, que só faz mais mal que bem.

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