quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Carpent tua poma nepotes*


Nepotismo
do latim nepos, "sobrinho" ou "neto"
s. m.
1. Valimento de que gozavam junto de certos papas os seus sobrinhos ou parentes.
2. Por ext. Favoritismo excessivo dado aos parentes por pessoa altamente colocada.


*Os teus descendentes colherão os frutos

Passa actualmente no canal chinês da TVB de Hong Kong uma série intitulada kong sam kai (宮心計), que traduzida literlamente significa qualquer coisa como "No coração da intriga palaciana". A acção decorre nos tempos da dinastia Tang, entre os séculos VII e X. Um desenvolvimento que me chamou a atenção no outro dia prende-se com uma rainha, outrora muito venerada, mas que depois da morte do seu rei e dos príncipes herdeiros, perdeu o respeito da corte, ao ponto de ser agredida por um eunuco. Tenho pena de no perceber um terço do rosário, pois tenho a certeza que isso ia contribuir em muito para o meu entendimento de alguns aspectos da cultura chinesa.

A notícia publicada na última terça-feira pelo Hoje Macau que dá conta do desaguisado entre o maestro da Orquestra de Macau e alguns músicos, e que já chegou ao CCAC, dá que pensar. Não na orquestra ou no maestro em si, e como sinceramente não sei bem o que por lá se passa a não ser pelo (pouco) que li na imprensa, não me cabe julgar quem tem razão. Falo de uma tendência a que temos vindo a assistir um pouco por toda a parte, e que Macau é fértil em exemplos. Até onde devemos deixar os círculos de influência e as amizades interferir com o mercado de trabalho?

Cada vez mais temos a sensação que os melhores e mais bem pagos cargos são entregues a quem tem “ligações”, a quem, à revelia de factores como competência, qualificação ou outros que normalmente determinam uma carreira de sucesso. Aquilo que se convencionou chamar de “nepotismo”, e que hoje não tem nada a ver com o Papa e os seus sobrinhos. Hoje os papas são outros, e enfim, numa dose massiva de pragmatismo injectada em agulhas daquelas que se usam nos cavalos, “quem os pode censurar por estarem a tratar da própria família?” Pois, que este é um mundo cão, e arranjar emprego é cada vez mais complicado. Trabalho sim, arranja-se, emprego é que não.

Mas em muitos casos, estes indivíduos “estudaram”, e “são competentes”. Pudera. Alguns de abastadas famílias, era o que mais faltava que pelo menos não estudassem. Quanto ao argumento da competência, esse, é mais relativo. Quando nepote, seja ele perfilhado ou afilhado “é mesmo muito competente”, isso pouco ou nada interessa. Há por aí muito boa gente, talvez ainda mais competente, que ficou à porta por não ter o élan adequado para o cargo. Às vezes o argumento da competência e do estofo chega a ponto de se dizer que fulano é tão bom que é “insubstituível”. Quando eventualmente chega outro para o substituír, espera-se que “consiga ser pelo menos tão bom quanto o seu antecessor”.

Os nepotes, esses, pouco ou nada se importam com o facto de só andarem com a barriga cheia por terem nascido com o rabo virado para a Lua. Os mais cínicos chegam, observam, estudam, no início “dão-se com todos”, e no fim escolhem uns e saneam outros, naquilo a que chamam “escolher equipa”. É o nepote burocrata. Outra espécie de nepote pouco se importa se foi o pai lhe comprou o lugar de vice-presidente na companhia. Gosta mais do estatuto, e, lá está, do salário. O “trabalho” é executado por um grupo de engraxadores a quem ele chama “colaboradores próximos”, que são no fundo “pessoas de confiança”. Alguns deles nunca contribuiram para a sociedade com um dia de trabalho digno desse nome. É o nepote playboy, que constitui uma maioria.

Ambos os nepotes rodeam-se de pessoas que se podem dividir em três grupos distintos. O primeiro grupo é o das pessoas que mantêm com ele uma boa relação, apesar de não simpatizarem muito, pois não lhes convém arranjar problemas com ele ou com o padrinho. O segundo grupo consiste nos bajuladores, que puxam constantemente o lustro ao nepote com a ténue esperança de poder entrar no seu exclusivo grupo de influências. Os terceiros, onde eu me incluo, são os que dizem “bom dia” ou “boa tarde”, consoante a hora (nunca “boa noite”), e sinceramente estão-se nas tintas para ele.

Peço desculpa pelo tom amargurado, mas já perdi a conta aos pelintras que um dia se tornaram "alguém" pelo simples facto de terem puxado o lustro a sapato certeiro. Burros são os que andaram a engraxar a bota errada, provavelmente. É que já levo quase 20 anos de Macau, e muito boa gente vira-me a cara ou muda de passeio quando me encontra na rua. Provavelmente porque os conheço desde "pequeninos". Sim, quando eram mesmo muito pequeninos, e nem eles próprios se lembram. É normal.

Ao contrário de Hong Kong, onde o povo bate o pé e os casos de favorecimento aparecem a letras gordas nas primeiras páginas dos jornais, ao ponto de se tornar um exagero, aqui deste lado a opinião pública é mansinha. Talvez devido à sua natureza histórica de enclave militarizado, e educação cívica demorou tanto a chegar cá que nem se deu ao trabalho de se meter no jetfoil e honrar-nos com a sua presença. Aqui o nepotismo funciona na base do "take it or leave it", para quem quer, boa sorte. Quem quer manter a dignidade e jogar pelas regras, é livre de tomar essa opção, sem que perspective um futuro muito risonho ou uma choruda conta bancária.

O sistema funciona como uma máquina bem oleada e quase nunca falha. É afilhado? Arranja-se um lugar. Não há lugar? Alarga-se o quadro. Alguém não gosta? É demitido ou transferido. É ilegal? Contorna-se a lei. Sai na imprensa? Justifica-se facilmente. Claro que sempre se pode recorrer aos tribunais se não se está satisfeito, mas isso é só para quem tem mesmo muito tempo e paciência. E não significa que lhe venha a ser dada razão.

É com este "deixa andar" que perpetuamos este estado de coisas. Hoje os nepotes tomam conta de empresas e repartições, em alguns lugares já tomam conta de países inteiros, e no futuro arriscamo-nos a que tomem conta de tudo. O pior é que é esta mensagem do "salve-se quem puder" e do "não sejam espertinhos e façam o que o doutor diz" que transmitimos aos nossos filhos com toda esta indiferença e laxismo. Como podemos esperar que sejam eles quem vai conduzir a nova revolução?

6 comentários:

  1. Séc. XXI - Século de Idiotas5 de novembro de 2009 às 20:38

    É o maravilhoso Século XXI! E o poviléu sorri feliz e contente no meio de tanta modernidade quando, afinal, a Idade Média ainda aí anda.

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  2. mas o' Leocardo , tu infelizmente, tambem andas muito mansinho, ora volta la' aquilo que eras e comeca a por aqui no teu jornal digital os nepotas todos como tu tao bem sabes...

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  3. Não ligo a provocações. O sr. anónimo deve ter ficado "tocado" com alguma parte do texto. As melhoras.

    Cumprimentos.

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  4. Felicito-o por traçar tal retrato da sociedade "portuguesa" de Macau, onde me incluo no grupo dos trabalhadores que apenas diz 'bom dia' e 'boa tarde'.
    O que é bom não interessa, mas desde que sejas amigo...
    Até era capaz de me drogar se ganhasse avultadas remunerações e, assim, enriquecer. Mas já estou quase com overdose. Adeus Macau!
    Por questões óbvias, não menciono o nome. Viva a mediocridade e a hipocrisia... e a falta de liberdade!

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  5. Que saudades que eu tenho das novelas chinesas... a sorte é que hoje em dia, graças à internet, é possível arranjar as séries, mesmo as mais recentes, para as vermos por cá em Portugal.

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