sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Manifesto (a guerra é onde a começaram)



Para começar gostava de vos confessar que estou muito triste e desiludido. Não sou de rodeios nem de meias palavras, e se tento explicar detalhadamente o que penso para atingir o menor número possível de sensibilidades, queixam-se que eu escrevo "testamentos". Há testamentos relativamente breves, mas para esta noção de "testamento", o que os portugueses normalmente entendem é "texto longo", e inicialmente aplicava-se a cartas comerciais, relatórios ou outros documentos escritos em que o pouco do essencial se retirava de muita prosa irrelevante e desnecessária. Ninguém gosta de ser obrigado a ler seja o que for, e quando isso acontece há a tendência para "disparar sobre o pianista", ou seja, a pessoa que escreveu, que para quem a lê "parece que fez de propósito, o sacana". Provavelmente o autor achou que cada palavra sua conta, e é parte integrante do corpo do texto, e sem ela poderia haver lugar a más interpretações, e duplos ou nenhuns sentidos. Os meus "testamentos" levam sempre a uma conclusão do tema que proponho abordar, e só a essa conclusão se pode atribuir a minha perspectiva sobre esse determinado assunto.

Assim sendo, e como podem imaginar, fico incomodado se daquilo que compõe a totalidade do texto seja retirada uma parte, que depois é manipulada de modo a dar a entender que a conclusão é outra, e muitas vezes totalmente díspar da ideia original que pretendi elaborar. Ainda há outra nuance que não posso deixar de salientar, e que me deixa igualmente incomodado: os juízos de valor. Se a meio de um texto produzir um raciocínio que alguém possa considerar ultrajante, ou indigno daquilo que considera ser a sua percepção de sociabilidade, ou até humanidade, o procedimento correcto seria o seguinte: ler o texto todo, de modo a certificar-se que a parte em questão não se refere a outra valência que não a que considera ter ficado ofendida, e caso persista na dúvida sobre as minhas intenções, pode-me sempre contactar, e sabe como. Infelizmente muito raras vezes tenho essa oportunidade de explicar mais detalhadamente a minha intenção ao transmitir uma ideia, e não poucas vezes sou interpretado de uma forma muito livre e quase sempre desonesta, com a palavra a cair na rua, e mais tarde já corrompida, anda de boca em boca, atribuindo-me ideias que nunca foram inicialmente projectadas, e algumas até bastante indecorosas.

Só posso assumir, e faço-o resignado ao "desportivismo" que convém demonstrar em situações em que a escalada do conflito pode assumir proporções muito acima da pior das expectativas, pelo menos da minha parte - recorrer à violência ou à ameaça por coisas que foram escritas é um retrocesso imenso, quer em termos humanos, quer na esfera do que consideramos o mínimo de liberdade de expressão, e aqui no Bairro do Oriente nunca se lavou roupa suja, e mesmo para quem diga que sim, há outro que possa pensar que "nem por isso". Fui, sou e sempre tentei ser cuidadoso, especialmente desde que ganhei alguma notoriedade - e isto agradeço a todos, para o bem e para o mal - e procuro nunca ultrapassar os limites daquilo que a minha liberdade me permite - e eu sei onde posso ir, e especialmente com quem. Foi aqui que fui também ganhando alguns "críticos mais incisivos", e esta é uma maneira diplomática de me dirigir a eles, que desiludi por não terem conseguido "puxar-me" por alguma ponta solta que eventualmente aqui deixava. E deixei algumas, mas outra coisa que aprendi em Macau antes de fazer isto que faço, que sempre foi por vontade de registar o que acontece em Macau e no mundo, é que nada pode correr tragicamente mal se falar do que penso ou sinto sobre aquilo que conheço, ou pelo menos que não seja algo completamente fora do meu alcance. Pode-se falar de tudo o que se quiser,e até do que não se sabe, mas nesse caso é necessário deixar saber isso mesmo: que não se deve levar a sério, e pode mesmo dar-se um tratamento humorístico - se for algo dado a essa aproximação, atenção.

Quando se entra em terrenos onde não se tem a certeza se a nossa visão do mundo e da vida podem chocar com a sensibilidade das pessoas ou dos valores que nesse lugar habitam, convém refrear o ânimo, pois o que podemos considerar uma crítica oportuna e inofensiva, reiterada por quem habita na nossa realidade, pode-se tornar num ataque a essa pessoa, e quem sabe a todo o seu universo, e conscientes disso, é bom que se saiba que não se vai propriamente ouvir elogios de toda a gente. Durante todos estes anos tive reacções mistas a um tema que talvez se possa considerar um dos mais abordados aqui no blogue: a religião. Sempre me referi à religião por "religião", e mesmo quando é a Igreja Católica o meu alvo - e admito que é "alvo", mas já lá vamos - não me sinto especialmente realizado se achar que a minha exposição foi bem conseguida, ou se penso que fui eficaz em passar a mensagem, pois em religião NUNCA se consegue agradar a todos.

A história tem inúmeros casos de pessoas que deram a vida por este valor, por se quererem expressar livremente, mas  esbarraram com obstáculos dirimentes desse seu ensejo, e que o esmagam, muitas vezes deixando mágoa e revolta em quem sobrevive ao seu martírio. O que me provoca um certo desconforto, e por isto falo apenas do que me vai na alma, sem exteriorizar o que sinto, é pensar que foi tudo "por uma boa causa". Eu preferia realizar as boas causas que não implicassem ser as últimas, e sabe-se lá com que outro proveito, ou de quem mais pode beneficiar. Por isso só quem se sacrifica poderia dizer se foi por boa causa, ou se o somatório das suas acções e as respectivas consequências o deixam tranquilo. e que não foi em vão que perdeu a única coisa que todos, quer os que escrevem mal ou bem, os que não escrevem e os que gostavam de escrever mas têm medo partilham em comum: a vida. E cada um destes deverá ter uma noção de que desde sempre existiu um bloqueio quanto aos limites do que se pode dizer ou escrever sobre alguma coisa, mas estranhamente não conseguimos aceitar. Mesmo quem faz do jornalismo, da notícia, da reportagem a sua profissão, tem uma medida para o que não importava que se soubesse sobre si, e aquilo que considera a esfera do privado, e até do íntimo, cuja publicidade seria o mote para um pesadelo tremendo, e quem sabe marcante ao ponto de nada mais ser o mesmo perante essa revelação, e o resto dos seus dias condicionados a um facto que nunca quis que fosse divulgado, porque não é tudo que interessa a cada um, mas em tudo há pelo menos um interessado.

Imaginem o que seria estar a ser gravado todo o tempo, até na intimidade, com todo e qualquer gesto capturado, e no fim de cada dia fossem editados os 20 minutos que alguém que não sabemos quem é determina serem os mais relevantes. Pensar nisto já é suficiente para ficar indisposto, mas não acontece, nem de perto, nem de longe, ou não sei o que estou aqui a dizer: o que se sabe do alcance daquilo que se pode saber e dizer de cada um? Tudo isto me leva aos primeiros dias deste ano, e recordo-me da tragédia em França que fez baixas do lado dos que acreditam que a liberdade não tem limites - e eu sou um deles, para mim não há tabus, mas lá está, tenho que avaliar os limites alheios. Se for falar de um prado onde só existem flores e insectos polinizadores, um ou outro rastejante, algum outro adereço que não outra pessoa, tenho o direito de fazer daquilo o maior delírio que se pode imaginar, e mesmo que seja demasiado surrealista, as pessoas cientes acabarão por aceitar, gostem ou não. Podem abster-se de ler, se quiser, ou até negar a existência do texto, mas do que me pode acusar, realmente? Com uma outra pessoa naquele cenário que se vai retratar, não se pode esperar que ela aceite embarcar nessa fantasia, e usar o pretexto de que foi ela que se intrometeu na sua visão. As pessoas gostam de saber até em que instância o seu nome poderá estar envolvido, ou referido sem ser na sua presença.

Não é à toa que as principais jurisdições mundiais estão hoje dotadas de legislação quanto aos dados pessoais, mesmo que isto dê a entender que toda a gente tem algo a esconder - e tem, agora a questão é saber se isto é relevante, quem pode estar interessado, e porquê. Para o generalista as pessoas até sorriem para a câmara, mas há que ter mais sensibilidade no  tratamento de certos detalhes que podem não ter interesse para a maioria, mas podem humilhar a pessoa em questão. Nem há sequer a possibilidade de menorizar as inconfidências com o apoio ou a compreensão de todos, mesmo que se trate de uma coisa irrisória e inocente, só a própria pessoa sabe o que vale para si, e as razões porque gostaria de manter a privacidade. E nestes últimos dias a perversão disto que estou a tentar dizer tem-me sido exposta da forma mais indecente que se pode imaginar. Falo, é claro, da roda-viva que foi a informação e desinformação durante a semana entre o atentado do teatro Bataclan em Paris, e hoje, sexta-feira seguinte. Foram sete dias em que assisti a descer pelo ralo abaixo muitas das percepções que alguma vez tive sobre a maleabilidade da opinião individual e de como pode facilmente ser arrastada pela opinião colectiva, que aqui pode ter a força de um tsunami. E se isto fosse uma questão de guerra de facções, eu podia dizer que perdia, mas é mais importante do que quem tem ou não razão: numa semana apenas, e surgida de repente vinda do nada, assistimos ao regresso de uma figura que por mais que a queiramos afastada de nós, regressa de tempos em tempos, mas nunca com este estrondo. Foi como se já estivesse a ser preparada com antecedência, e elaboradamente, e o terror da Sexta-Feira 13 o grito do Ipiranga deste mal, que nada tem de tropical.

Quando comecei este texto, posso ter dado a entender que estava a divagar um pouco na direcção de parte alguma, como se estivesse a "encher chouriços". Mas na verdade o que eu queria era preparar terreno para dizer o que não é fácil de se dizer, e ninguém gosta de ouvir, e não quis deixar de fora a emoção com que fiquei, recordo, triste e desiludido. Referi ainda que para mim a religião, ou na sua forma mais adequada a este contexto as religiões, são apenas uma das "coisas", como outras tantas, que entram no tempero da vida, e se todos partilhássemos o mesmo o gosto pelos temperos, talvez não fossem necessárias tantas religiões, mas ao contrário destas, os temperos não procuram ser o único a entrar no cozinhado. Em Janeiro não me quis alongar sobre os ataques ao Charlie Hebdo, porque aquilo eu penso será sempre interpretado como provocativo por quem achou que se tratou de uma tragédia, bem como pelos entusiastas da "causa", como se alguma causa pudesse existir que justifique tamanha violência. Por um lado os malogrados cartoonistas do periódico francês são livres de se expressarem como muito bem entenderem, e mesmo que eu e todos os que partilham do senso comum procuremos protagonismo, não será repetindo vezes sem conta o mesmo acto que vamos fazer toda a gente ir assistir, e mesmo entre os que vão, não dá para fazer com que todos gostem. As religiões têm esse defeito: não se podem manusear os seus princípios sem ofender os que acham que estão bem como no seu estado original, e que ninguém os deve alterar, questionar, ou até às vezes mencionar por mero capricho ("...em vão"). Quando entramos neste território dotados da tal liberdade de expressão, é bom que tenhamos também um conhecimento razoável sobre aquilo que se vai ali encontrar. O choque entre a liberdade que vai até ao limite de uns chocará sempre quando entra na esfera da liberdade dos outros.

Dentro de nós há sempre um "fogo" que se alimenta de bem-quereres, e vai querendo mais e mais, ao ponto de começar a rejeitar tudo o que seja menos do que isso - se deixarmos. O segredo para impor o respeito e ao mesmo tempo ser ouvido, tido e achado é não presumir que tudo o que se diz está certo, ou pelo menos aberto a interpretações, e por isso "válido", e há que aprender a mudar de opinião conforme novos factos que se venham a conhecer sobre o assunto em causa. Mudar de opinião não implica prostrar-se no chão e pedir perdão pelo erro a chorar, de joelhos em cima de cacos de vidro. O maior erro e o pior que se pode fazer é repetir a mesma asserção, mesmo sabendo que está errada, de modo a obter uma reacção mais forte de quem essa falácia mais pode magoar. E para quê? Só se pode entender de duas formas: ou se quer demonstrar que mesmo estando errado tem direito a uma voz, e ninguém tem a autoridade para o silenciar - e aqui pode até surgir uma oportunidade para insistir no remoque provocatório, ou intensificá-lo - ou a baixa capacidade cognitiva e a expressão escrita deficitária não o permitirem retratar-se, e nesses casos até se ignora, não temendo qualquer impacto na vida de ninguém. O "mas" da minha consternação e condenação dos atentados do Charlie Ebdo era difícil de exprimir na altura, e preferi guardar a minha opinião para mim mesmo, mas após  tudo o que vem acontecendo desde dia 13, já nem tem qualquer valor: condena-se, não é justificado nem merecido o que os terroristas fizeram, MAS não se pode dizer que foi "um choque inesperado". Como eu disse mais acima, só os próprios saberão se valeu a pena o seu sacrifício, mas se formos olhar para como estávamos neste departamento há uma semana, diríamos que por enquanto nada nos fazia prever que foi em vão, e o futuro poderia justificar o martírio em nome da liberdade, mas agora tenho muitas dúvidas.

Nos artigos que vou deixar a seguir, não vou contribuir com nada que torne aquilo que eu prevejo como o pior que pode acontecer mais leve, e sinceramente a única saída honrosa seria não acontecer nada, e tratar como se tivesse sido uma febre passageira, que elevou a temperatura quase até ao limite da resistência, e muito do que se viu e leu pode ser interpretado como um mero delírio. Vou apresentar uma série de factos com que deparei durante os sete dias depois dos atentados, que passado uma hora, e ainda se contavam as vítimas, estava relegado para segundo plano pelo segundo atentado, o tal invisível e silencioso, que ainda decorre agora, neste preciso momento, e pode não acabar tão cedo. Aqui entendo as palavras daquele grupo de índios que entra nesta "coubóiada", os católico da aleteia:  o terrorismo é um Inferno sem fim. Espero que fiquem deste lado, não estou querer assustar ou alarmar ninguém (isso é o trabalho destes tipos e tipas), e nem vou pedir para me darem razão. Façam vocês os juízos que quiserem, mas principalmente tenham juízo com o que fazem. A guerra que andaram a pedir na rede, vão tê-la na rede. E era bom que ninguém esqueça quando, onde, porque e quem dá início às guerras. Eu não gosto de guerras, nem de religiões, e muito menos quando as duas se juntam.


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