sábado, 25 de abril de 2015

A Poesia do Carvalho


Não é bem a poesia do Otelo Saraiva, mas é na mesma do Carvalho. Foi o artigo de quinta-feira do Hoje Macau (formato .pdf p.22), que foi uma singela e meio-obscura homenagem ao 25 de Abril, do ponto de vista da Ásia, e das suas proto-democracias. Continuação de um bom fim-de-semana.

Num país longe, muito longe de todos os outros mas não muito longe daqui, acabava de chegar um estrangeiro, um pensador, alguém que vinha o tempo de pensar por si e pelos outros. Homem bem parecido e bem falante, inteligente e culto, já um pouco vincado dos anos mas ainda com um longo caminho pela frente, e como todos iguais a ele um conceito muito próprio do mundo perfeito, ou mais ou menos perfeito para o maior número possível. Este país onde este estrangeiro acabava de chegar não era grande, antes pelo contrário, de densidade populacional elevada e uma economia fulgente, resultado do esforço de décadas sempre debaixo da liderança do mesmo grupo que tinha tomado o poder após a independência de um país muito longe dali, perto do outro de onde vinha aquele estrangeiro.
O estrangeiro adaptou-se bem e depressa. Foi bem recebido, a língua não era difícil, semelhante à sua, por culpa dos antigos donos serem também seus vizinhos no longínquo lugar da terra de onde tinha partido, e a vida corria com a  confiança de que o dia seguinte seria melhor que o anterior, e a população vivia o seu dia-a-dia dentro da normalidade que seria de esperar de uma sociedade. Não era preciso pedir quase nada, e poucos eram os motivos de queixa de uma população que praticamente usufruía de tudo o que precisava, e quem se apanhasse numa situação de “stress”, teria o seu descanso e quiçá o respectivo acompanhamento médico. Para este estrangeiro faltava qualquer coisa, algo que soltasse os movimentos e levasse o pensamento em direcções diversas daquela onde quase todos pareciam convergir. Faltava-lhes poesia do Carvalho.
A poesia do Carvalho não era completamente estranha às pessoas daquele país, trazida pelos colonizadores e ensinada ainda aos mais antigos, entre eles algumas elites onde se contavam sobretudo intelectuais e académicos. Entretanto foi-se tornando menos popular durante as primeiras décadas após a independência, pois era tempo de todos arregaçarem as mangas e consolidar a autonomia, sendo por isso necessário encontrar um tipo de poesia mais consensual para se evitarem dispersões inúteis e contra-producentes. A poesia do Carvalho, devido à sua falta de popularidade,  foi-se tornando mais rara e quase desaparecia, não fosse pelo regresso de alguma diáspora, aproveitando o período de maior prosperidade económica, e lá está, os intelectuais, os académicos, as pessoas a quem era dado mais tempo para pensar, e tinham a missão de escolher entre os mais jovens mais aptos para conduzir os destinos do país para as gerações seguintes, mesmo que isso não fosse muito garantido. 
Consciente de que aquela população teria a ganhar mais com um certo plano de formação, especialização e aperfeiçoamento mais científico e menos “espiritual”, ou baseado em meras previsões sem suporte cientifico, o primeiro governo chamou a si o poder de forma temporária...mente definitiva.Depois de dez anos a derreter o aço, outros tantos a soldá-lo, cortá-lo  e moldá-lo, para quê começar tudo de novo? E aquele mesmo elenco foi ficando, solidificando o poder, tornando-se ao mesmo tempo mais rígido, adverso a mudanças ou ideias que fossem contra a rota previamente estabelecida. Para garantir que tinham as suas regalias e as dos seus filhos garantidas, o poder foi criando inimigos, não se  coibindo de pintar das cores mais convenientes cada um deles.
Desse “lixão” liberal constava a poesia do Carvalho, pela qual o estrangeiro se ia interessando pela versão local, fazendo a devida pesquisa, recolha, reconstituição e até alguma divulgação. Apesar de ter o apoio dos seus colegas académicos, eles próprios apreciadores do estilo, ora por nostalgia, os mais velhos, ora pelo factor da novidade, os restantes. O Governo desconfiava, mas sendo esta uma tradição com raíz local, aceitou-a inicialmente, acrescentando  à novidade que constituía este renascimento da poesia do Carvalho a música tradicional  - uma simbiose quase perfeita, a destes dois. Mais tarde com a expansão dos centros urbanos e o aparecimento das periferias, os primeiros problemas derivados da desigualdade e da exclusão levaram ao aparecimento de uma versão mais radical da poesia do Carvalho, mais centrada na mensagem, e que a certo ponto aumentava a apreensão entre as elites. “Nada de preocupante” – dizia o estrangeiro, começando a identificar um conjunto de valências semelhantes às suas, aquelas que para ele eram os ingredientes de um mundo melhor, com as mentalidades mais abertas. Contudo a mudança foi mais abrupta para alguns, que começavam a levar a poesia do Carvalho mais a sério, identificando nela um potencial maior e uma a adesão das massas ao seu princípio libertário – neste caso seja lá qual ele for, e aqui há muito por onde escolher.
Com uma uma contestação crescente e onde se reconhecia a retórica muito própria da poesia do  Carvalho, o Governo tomou uma das duas opções que todos os Governos tomam nesta encruzilhada: retirou todo o capital que podia, colocando-o em contas de países onde por acaso se encontrava o daquele estrangeiro insuspeito – a outra alternativa seria decretar a lei marcial e ressurgir como uma ditadura, mas sem lhe chamar assim. Com este pressuposto garantido, as elites era quem menos se precisavam de preocupar com a eventualidade de uma crise económica ou política – e a crise, seja qual ela for, é terreno fértil para recitar a poesia do Carvalho. E de facto assim foi, e depois de uma fase estaminal, uma identidade  que nunca existiu e uma ideologia que não se diferenciava em quase nada das outras, pouco restava senão a palavra “revolução”, tão despida e tão carregada de chagas de outras injustiças, cheia, cheia de defeitos. O jovem estrangeiro, cada vez menos jovem e em tempos um idealista que sonhava no dia em que a humanidade receitasse me uníssono a poesia do Carvalho, sentiu que não fazia ali mais falta, e num dia Outono resolveu voltar para casa. Foi com a fruta que partiu. 

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