terça-feira, 3 de fevereiro de 2015
Massa crítica (maça e critica)
No seguimento do artigo anterior, mantenho-me na toada daquilo que alguém uma vez chamou de "comentário ao comentário" - que espirituoso. Em primeiro lugar gostaria de fazer uma vénia à Inês Santinhos Gonçalves, que assina no Ponto Final um artigo que contém pontos com os quais me identifico de tal forma que não resisti e deixei logo saber disso na minha página do Facebook, de um jeito que levou a que a autora tenha interpretado o meu entusiasmo de uma forma mais extensiva. E sabem uma coisa: ela tem toda a razão - eu sou aquilo que se designa por "um sacaninha da pior espécie". Uma vez ultrapassado este irrelevante detalhe, passemos ao essencial da observação feita pela Inês, que desconheço há quanto tempo terá chegado a Macau, mas certamente que terá sido muito depois de mim - e faço esta dedução pelo facto de eu ser um "gimbra", enquanto ela terá recentemente passado da idade da adolescência. Contudo tiro-lhe o chapéu, não só por conseguir detectar uma particularidade que os locais resumem ao conformismo "Macau sã assi", e que já no meu tempo (no século passado, entenda-se) era muito fácil de observar: a falta de massa crítica, aliada a um servilismo e regada com uma boa dose de bajulação.
Mas antes de mais queria confessar algo que se calhar muita gente não sabe, e que explica muito do meu carácter, que alguns podem entender como "incendiário", a roçar os limites do irresponsável. Vim para Macau com 18 anos e o secundário completo, tenho hoje o mesmo emprego de então, em suma: nunca estive desempregado nem nunca precisei de engolir o tipo de desaforo que muito boa gente que não teve a vida tão facilitada foi obrigada a engolir. Nem por isso me considero um "sortudo", e tal como toda a gente já fui obrigado a fazer concessões contra a minha vontade, tive a minha quantidade de sapos a passarem-me pela laringe, em suma, o normal do teatro que é a vida. Contudo, talvez por ter encontrado menos obstáculos na aquisição das necessidades mais básicas, fui passando pelas idades fiel a certos princípios, ao mesmo tempo que assistia a outros que simplesmente abdicaram da sua verticalidade, quando nem era isso que se exigia da sua parte. Temos que admitir que neste aspecto Macau prima pela sua já célebre singularidade. De facto, e pegando no exemplo que a Inês usou no seu artigo, fica muito mais fácil dizer que se é "Charlie" do que ser "Charlie", mas essa é a velha falácia de que sofrem muitas convicções; há sempre aqueles que fazem, que matam, que fritam e trinta por uma linha, mas na hora da verdade há sempre qualquer coisa que os impede, e "depois logo se vê", e ui, logo aqui em Macau, que faz aquele calor húmido que na hora de arranjar desculpas pode-se alegar "moleza". E toda a gente percebe.
A questão do orgulho, que se pode classificar de "besta", é próprio de um local pequeno como Macau, onde, e temos que dar o braço a torcer quanto a este aspecto, é muito mais fácil aparecer do que em Portugal, por exemplo. Não lhe chamaria tanto "ter um olho em terra de cegos", e porque seria assim, se nem existe mercado que chegue para encher as medidas a tanto ego inflamado? "Aparecer" em Macau é quase como tirar uma fotografia com a figura de cera de Lady Di no museu da Madame Tussaud: manda-se para a família e para os amigos, e fica-se por aí em termos de interesse. Pode ser defeito meu, que não me adaptei aos baixos níveis de exigência locais, e fui mantendo o contacto com a realidade. Outros há, por sua vez, que mesmo tendo que batalhar para chegar ao mero estatuto com que se apresentam, chegam a Macau e logo acham isto o máximo! Mesmo que venham com a intenção de elevar o nível, cedo percebem que se for para ficar, o melhor é "juntar-se a eles" em vez de ter pretensões a "vencê-los". Recordo-me de um caso particular, mas como esse certamente há outros, de um certo vivaço que já alguns anos depois de chegar a Macau produziu um comentário que registei e que para mim estará sempre associado ao seu autor: "em Macau há falta de massa crítica". Esqueceu-se de acrescentar a esta oração "...e ainda bem!", pois quando aparece um vestígio de "massa crítica" isto é entendido como "má vontade". Aí está: aqui a "massa crítica" pode muito bem encaixar-se no lugar do "Charlie", que é bem visto parecê-lo, mas nem pensar em sê-lo.
Nos tempos da Administração Portuguesa existia uma comunidade mais heterogénea; enquanto hoje os portugueses aqui residentes são na maioria quadros especializados, empresários e ainda alguns "dinossauros" que resistem dos anos 60 e inícios, que aqui vieram cumprir o serviço militar, ficaram e constituíram família, e já nem lhes passa pela cabeça sair de cá. Antigamente bastava ter um parente, amigo ou conhecido em Macau, e entre os que aproveitaram a estadia e os (como eu próprio) que acabaram por ficar houve ainda um grupo que tentou "arriscar" e investir no território, para aqui consegui fixar-se, e já agora, e porque não, "dar-se bem". Entre este grupo havia os que faziam em casa uns pipis para petiscar com os amigos, e bastava serem elogiados duas vezes seguidas e dava-lhes na telha abrir um restaurante - que melhor maneira para se fixar do que na indústria da restauração. Estes servem que nem uma luva no conceito de "deslumbramento" que dá título ao artigo da Inês; "ofuscados" pelo sucesso dos Fernandos, Afonsos, Santos e quejandos, pensaram que era "sempre a aviar", e nem ponderam factores como a gestão ou até o próprio investimento, que não traz retorno nos primeiros meses, quanto mais nos primeiros dias. A maioria fechou quase tão depressa quanto o tempo que preparou a inauguração, e aqui notou-se a falta da tal "massa crítica"; os amigos iam lá e diziam maravilhas, enquanto os outros clientes não diziam nada. Em comum tinham o facto de não voltar a por lá os pés. Um mês depois, já com o sonho desfeito, ouvia-se dos tais "amigos da onça" a comentar: "já sabia...não era grande coisa". Sintomático.
Com o surgimento dos novos casinos e com as rendas pela hora da morte, a restauração deixou de ser um chamariz, e hoje os "melhores da rua deles" encontram-se mais na área das chamadas "indústrias criativas": artistas plásticos, músicos, cineastas, uns caídos de pára-quedas com uma bolsa da fundação tal e tal, outros locais filhinhos do papá formados "lá fora" e cheios de vontade de revolucionar o ambiente cultural, e mais uma vez sem a tal folga para aprender com os erros. Rodeam-se de amigos e bem-querentes, é só palmadinhas nas costas, e quem não tiver nada de bom para dizer, não diga nada. É impossível incutir o conceito de "crítica construtiva", pois tudo o que não seja bajulação vai ofender o menino ou o paizinho dele, e cria "mau ambiente". Mesmo quando testam o seu talento (ou a falta dele) fora de Macau, de volta ao planeta Terra, mesmo que sejam "detonados" voltam para cá, onde se vão alimentando de elogios. Se for preciso ainda lhes dizem coisas do género: "os gajos lá na Geffen não percebem puto de música...és o maior, pá!". Os que têm algum talento vão-se acomodando - para quê evoluir ou tentar levantar o nível se depois vêem coisas bem piores receber os mais rasgados elogios, enquanto ele nem existe se não for devidamente "apadrinhado"? E perante este estado de coisas, do que vale também fazer crítica, se não há ninguém para lhe dar ouvidos e ainda se fica mal visto?
E mesmo que se ouse discordar do cortejo de louvores ao banal e ao medíocre, ainda se é acusado de ser "invejoso", ou de "não estar qualificado para criticar". De facto, o que vinha para cá fazer a crítica especializada seja do que for, se não há nada para criticar a esse nível, ou ser levado a sério? É que nem a mínima concessão ao bom gosto certos "artistas" são capazes de fazer, e o mais irritante é quando desafiam os desalinhados a "tentar fazer melhor". Eu posso não ser licenciado em cinema, mas sei que um plano de um minuto a apontar para um vendilhão de peixe seco é muito para lá dos cinco segundos (ou menos) que seriam suficientes para expressar essa ideia. Aliás Macau continua "encravado" nessa ideia de que tudo o que se faz no campo do audiovisual tem que ser necessariamente dedicado a chinesices, bairros antigos, velhas tabaqueiras e pescadores moribundos. Nas artes posso não ser nenhum Lubelski, mas sei distinguir um objecto remotamente artístico com um traste que alguém se esqueceu de levar com o resto do lixo, e um quadro que vale a pena olhar não se confunde com rabiscos que uma criança de três anos seria capaz de decalcar. De música posso não ser a melhor opção na hora de criticar certos estilos de que não sou apreciador, mas de música ligeira não é difícil distinguir o melódico da poluição sonora. Mas não adianta: são felizes assim.
A ladainha do "respeitinho" a que a Inês se refere ainda no seu muito pertinente artigo que me serviu de mote para uma dissertação mais extensa tem uma particularidade curiosa. É do conhecimento geral que em cada português existe uma predesposição genética para o "pidismo" - todos temos um pequeno PIDE dentro de nós. Em Macau é ainda mais evidente, e para piorar as coisas há os que adoptaram o método local do cumprimentio rígido das hierarquias. Para os chineses, onde a "face" tem o valor que se sabe, a rigidez com que se cumpre o caminho descendente na pirâmide da obediência não tem tanto a ver com quem sabe mais ou quem sabe menos, mas com a quantidade de graxa que se investiu para chegar ao topo. Os nossos compatriotas confundem isto com puro génio, e o facto de se encontrarem nesta posição confere-lhes o estatuto de "donos da razão". Enquanto os chineses testam os limites da hierarquia, os portugueses convencem-se que são um oráculo de sabedoria. Louva-se a iniciativa da jornalista do Ponto Final em abordar o tema, pois provavelmente metade daquilo que escrevi neste texto já me habilita a ter que olhar com mais cuidado para um lado e para o outro quando atravesso na passadeira. Ah sim, mas toda a gente concorda, claro. Dizem que são o "Charlie". Dizem...
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