sexta-feira, 26 de dezembro de 2014
Lembrando o tsunami (e pensando na Mónica)
Passam hoje 10 anos sobre o "tsunami" que vitimou mais de 275 mil pessoas em 14 países, afectando regiões do globo desde o sul do continente africano até à Australásia, cobrindo 1200 km da crosta terrestre, um impacto equivalente a 23 mil bombas atómicas iguais à que foi lançada em Hiroshima, em 1945. A última vez que havia sido registado um fenómeno natural com este impacto foi algures no século XIV, e como se pode compreender, o acesso à informação e o seu registo para referência futura não era o que é hoje, e é difícil perceber qual terá sido o impacto humano que teria este fenómeno a um tempo em que era mais difícil de explicar. Para nós foi fácil quantificar: segundo o banco mundial, foi um total de cerca de 10 mil milhões de dólares em prejuízos materiais; quase metade deste prejuízo saldou-se em 141 mil habitações destruídas, danos para a agricultura, pecuária, pesca outro pequeno comércio rudimentar e de subsistência. Felizmente o mundo entendeu a dimensão do problema e respondeu à chamada das associações humanitárias, contribuíndo com quatro vezes mais o total do prejuízo. Se esse dinheiro lá chegou, se foi bem aplicado ou se fez muita ou pouca diferença, pouco importa. Teria feito uma diferença enorme se pudesse fazer o tempo voltar a trás e recuperar cada uma das vidas humanas que se perderam nesse fatídico dia 26 de Dezembro, o dia seguinte ao dia de Natal de 2004. Assim como as questões relativas à chegada do auxílio monetária às zonas carenciadas, deixo também as questões religiosas para quem as quiser analisar a fundo. Para mim é igual ao litro.
O "tsunami", expressão japonesa que significa "onda de porto", ou "maremoto", como já tinhamos ouvido falar mas visto apenas na ficção, nas grandes produções de Hollywood, dos filmes de desastre, seguiu-se a um mega-terremoto, assim designado qualquer movimento sísmico que ultrapasse os 8 graus na escala de Mercali. Mega foram também os números do desastre; o país com mais perdas, quer materiais, quer humanas, foi a Indonésia, com 160 mil mortos e mais de meio milhão de desalojados, com a região de Banda Aceh a ser a mais afectada. Seguiu-se o Sri Lanka, e depois a zona costeira do subcontinente indiano, nomeadamente a província da maioria étnica tamil, e depois a Tailândia. Foi no sul deste país que se contaram as vítimas que mais têm a ver com a nossa realidade, ou seja, com Macau. Por uma infeliz coincidência, estavam nesse dia na praia de Laokhan, a mais afectada pelas ondas de mais de 30 metros de altura, vários elementos da comunidade portuguesa que, e como já é hábito todos os anos, optaram por passar o Natal ao calor, nas praias da Tailândia, e Phuket era na altura um dos destinos de eleição. Azar ou apenas coincidência, as férias destes residentes foram abruptamente alteradas pelos trágicos eventos, e entre vidas perdidas, famílias enlutadas e histórias de sobrevivência, há algo que certamente todos terão ficado com algo bem presente: o factor surpresa - duvido que muitos soubessem o que se passava naquele instante, se houve alguém com discernimento para racionalizar a situação, e no caso de existir alguém nessa situação, aplicar algum putativo ensinamento adquirido sobre como reagir naquelas circunstâncias.
Toda a dor, mágoa e consternação chegariam apenas na hora de contabilizar os estragos, no rescaldo da tragédia de que muitos nunca pensaram ser parte da contabilidade um dia. Entre as baixas encontram-se cidadãos de todos os países da Europa Ocidental: portugueses, espanhóis, franceses, italianos, britânicos, ou seja, todos turistas ou pessoas que por uma ou outra razão haviam escolhido a região junto do Oceano Indico para passar a quadra natalícia. Quando perdemos alguém que nos é querido, pouco nos importa que com ele tenham morrido mais cem, mais mil, cem mil ou um milhão, e o mesmo pensam os outros da nossa perda - a dor é pessoal e intransmissível. Contudo, e por se ter tratado de um desastre natural, nota-se que o espírito humano foi buscar dentro de si energias para dar a volta por cima. Hoje, ao contrário do que acontecia na antiguidade, e quanto mais para trás recuamos no tempo mais difusas são as explicações, podemos encontrar uma explicação lógica, definitiva e convincente que dê pelo menos para alimentar a alma e atenuar a dor da perda: foi a força da natureza. Conheço várias pessoas que estavam na praia nesse dia, e nenhuma, felizmente, ficou maltratado ou teve familiares entre as vítimas. Digo "felizmente" apenas por esta razão: não tendo estado eu lá, a única coisa a que me poderia associar de algum modo à tragédia alheia seria associando-me a ela através de uma referência pessoal, da minha dor privada, independente da sua intensidade.
Deu-se um terremoto, e como efeito houve uma deslocação das placas tectónicas, as camadas que formam a crosta terrestre, e desta forma influenciando as marés, mais especificamente a forma das vagas oceânicas que normalmente vemos a chegar à praia na forma de ondas inofensivas. É triste, dói para quem perdeu alguém, explica-se, e o tempo encarrega-se do resto. Quando é a natureza o agente, não há responsabilidades para apurar, não se há lugar a explicações ou sede de justiça - foi como foi, e não precisa de avisar, tal como o sol e a lua não carecem da nossa autorização para se revesarem como astro imponente no firmamento, ou teremos o engenho para impedir que as sementes brotem da terra e dêm início a um novo ciclo, e mais tarde assistimos impotentes ao fim desse ciclo, quando as folhas caem, o sono temporário vem na forma do Inverno e aí tudo se renova. Podíamos colocar em cima da mesa algo tão relativo como a fragilidade da pessoa humana, mas a quem podemos erguer os punhos cerrados de raiva? Assim como Melville nos ensina no seu clássico "Moby Dick" que não faz sentido vingarmo-nos de um animal, também é preciso ter a consciência que o mar, os vulcões, os fenómenos naturais, tudo isto acontecia antes do aparecimento da nossa espécie, e continuará a acontecer depois do seu fim - se serão a causa ou um agente desse fim, nunca saberemos, e muito menos eles nos dirão.
Ao fim de dez anos, quando se faz o balanço e se coloca nos pratos o bem que tanto nos serve e o mal necessário que a natureza nos oferece, encontramos o equilíbrio, o mesmo equilíbrio que é necessário para encontrar a resiliência necessária para conviver com uma força que nunca conseguiremos contrariar ou sequer prever com uma precisão clínica, como as ciências que criámos para nos tornar a vida mais fácil. Essa vida não é da conta da natureza. Um exemplo de resiliência, de querer, de vontade de andar de mãos dadas com a natureza é o de Mónica Ribeiro, uma jovem que tinha 13 anos quando se deu o "tsunami" no Oceano Indico. Entre os milhares de vítimas e desaparecidos a lamentar estavam os seus pais, ambos residentes em Macau, onde a Mónica frequentava o ensino secundário. De um momento para o outro a vida desta jovem dava uma volta de 180 graus - de uma simples estudante, uma filha feliz, com um lar, uma família, amigos e tudo o que uma adolescente da sua idade poderia desejar, ficou sem nada. Assim, sem mais nem menos. De repente orfã, sem meios de subsistência, foi obrigada a deixar Macau, os amigos, e passou a depender de familiares mais próximos que tinha em Portugal. Não conheço a Mónica nem conhecia os seus malogrados pais, e nem me atrevo especular sobre as suas relações familiares, e estou apenas aqui a aplicar a mim próprio a mesma medida: dificilmente teria a força que ela teve para ultrapassar este choque. Rapariga de fibra, esta.
Vi na reportagem da RTP a forma como tão graciosamente recordou os eventos que mudaram para sempre a sua vida - é uma idade difícil para superar uma tragédia destas, os 13 anos, mas pelos vistos a adolescência correu-lhe bem. Nestas reportagens que mexem com este tipo de emoções, é natural que os repórteres queiram o seu quinhão de "sangue, suor e lágrimas", nem que seja para transmitir aquela dose de realismo, de emoção, como um cozinheiro que deita uma colher de sal na sopa para espicaçar o sabor dos seus ingredientes, apelar a que libertem o seu sabor e dêm ao produto final um gosto mais apelativo. Mas a Mónica esteve à altura, e soube comportar-se como a senhora feita que é: nem uma lágrima de crocodilo, um fingimento, uma emoção fora da personagem de uma jovem de 23 anos, feliz e sorridente que aparenta ser. Olhando para os valores que tempos nestes tempos que correm, é possível que tenha desiludido os adeptos da lamechice, da televisão sensacionalista, do consumo rápido e imediato, do "abro, uso e jogo fora". Mesmo o discurso, que nem consigo identificar com a sua imagem, contém uma dose de "prosa poética" que mexa com as emoções. Tudo normal, como a gente gosta e como devia sempre ser.
Hoje a Mónica é recém-licenciada em Medicina Veterinária, ou seja, retribui de alguma forma para a natureza, a que outros ou outras atribuíriam as culpas pelo choque que sofreram ainda durante tenra idade. Visitei a sua página no Facebook e não vi lá uma única referência à tragédia, ou qualquer apelo, tentativa de vitimização, ou sequer uma ligação a qualquer página de alguma organização, nada relacionado directa e/ou indirectamente a seja o que fôr ou que dê alguma pista que se tenha posto alguma vez em bico de pés, ou sugira que andou de mão estendida a pedinchar, e nem a pedir pelo menos que tenham pena de si. Há quem ache que no seu lugar a Mónica teria toda a legitimidade para liderar uma ONG qualquer dedicada aos tornados e avalanches, ou ser embaixadora dos desastres naturais daqui e d'além-mar, uma "caça-tsunamis", em suma, qualquer coisa que a compense pela sua perda. Mas não, a vida pregou-lhe uma partida, e ela fez-se à vida, nunca lhe virando a cara. Ponham os olhos neste exemplo, pessoal, que o mundo precisa de mais mulheres e homens como a Mónica. Obrigado, por seres quem és, e desejo-te todo o sucesso deste mundo.
ela tinha treze anos, nao frequentava o secundario. para ganhar um concurso que lhe permitia viajar pelo mundo a trabalhar, ela publicou um filme em que contava a sua historia (incluindo e assumindo o tsunami) com o objectivo de obter os votos necessários.
ResponderEliminarGostei muito do texto,até pq a Mónica é minha prima e, sem dúvida, uma força da natureza :) "Ser Feliz é uma escolha que se faz", diz. Foi/é inspiração para amigos e familiares e o resultado do Amor Imenso que os pais lhe dedicaram. É uma Esperança, haver no Mundo gente com tanta Força Interior ;)
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