sexta-feira, 12 de dezembro de 2014
A justiça é cega, a memória é curta
A lamentável sucessão de eventos que levaram à condenação de um cidadão português residente em Macau a cinco anos de prisão fizeram eco na imprensa de Macau, e nas duas línguas. Mais uma vez tivemos o prato oriental, mais picante e exótico, e o Ocidental, mais adaptado ao gosto lusitano mas um tanto ou quanto insonso. Quase que passei ao lado da notícia, que considero importante por motivos que vou passar a desenvolver já a seguir. Contudo de tão carregada que esteve a minha agenda esta semana, mal deu para desfolhar os jornais e ler as "gordas", mas alguém que leu pela em língua chinesa, nomeadamente do jornal Ou Mun, pensou que eu ia achar a história "interessante", e assim deu-me um "toque". Fui procurar saber o essencial nos três matutinos portugueses, onde com uma ou outra diferença, os dados batiam certo; o Hoje Macau incluíu declarações de elementos envolvidos no processo, e alguns deles falam da "má preparação" ou "inexperiência" da juíza, e a esse respeito o Jornal Tribuna de Macau descreve um detalhe curioso: a magistrada detecta "uma expressão de dor" no rosto da vítima numa fotografia onde ela aparece a sorrir, aparentando não estar a ser sujeita a qualquer tipo de sevícia ou ameaça - e esta foi uma prova apresentada pela defesa, e mais do que isto é impossível afirmar, uma vez que sendo esta uma prova, não temos a possibilidade de opinar sobre o palpite da sra. juíza. Sabendo dos factos apenas o que li do HM, JTM e Ponto Final, mais tarde tive acesso a uma tradução da notícia do Ou Mun, e que me deixou perplexo. Pior do que isso: assustado, apreensivo e receoso.
Assustado com alguns dos comportamentos do casal, agora na situação de autor e arguido; apreensivo com a falta de entrosamento entre a justiça e a informação, e se forem ler o que dizem os jornais portugueses e depois o que está no Ou Mun, vão entender a alegada atrapalhação da sra. dra. juíza; receoso do descrédito em que caíu a verdade, seja ela qual for, e da facilidade em como num dia se passa de "preso pelo beicinho", para "preso", ponto. Convenhamos que na prática a diferença é bem maior do que a ausência de um metafórico "beicinho". Todos sabemos como em justiça a verdade tem um valor relativo; fala-se no "apuramento da verdade", mas o veredicto é feito com base apenas naquilo que se consegue provar. Na falta do elemento físico da prova, valem os depoimentos das testemunhas, e se for este o critério decisivo, então é tudo uma questão de quem diz o quê, e do valor que atribui ao juramento, e de qual a exposição da testemunha ao crime de perjúrio. Não querendo questionar a competência da magistrada em questão, gostaria de saber em que parte do curso para magistrados do Gabinete de Formação Jurídica sem ensina a interpretar fotografias para além daquilo que é possível visionar - as fotografias não se escutam, não se sentem, portanto como é que se vê o que não está lá? Palpite? Percepção extra-sensorial ou algum poder sobrenatural? Não me digam que foi "intuição feminina" - essa não, por favor.
E por falar nisso, neste tipo de processo onde se mexe com a condição feminina, e quando a acusação é desta natureza e pende sobre o homem, é difícil granjear a simpatia de seja quem for. Um homem acusado de um crime de agressão sexual que esteja completamente inocente terá sempre mais dificuldade em convencer até os seus melhores amigos do que uma mulher que o acuse de a violar sem que tenha sido tocada com um dedo. Isto é matéria para outro artigo que deixarei aqui mais tarde, mas outro factor importante é a experiência do juíz, ou neste caso da juíza. Não conheço bem os critérios de escolha do Ministério Público para cada caso específico, mas sei que noutras jurisdições com o mínimo de credibilidade são apontados magistrados que são ou foram casados para tudo o que tem a ver com disputas conjugais: divórcios litigiosos, partilha por divórcio, poder paternal e custódia de menores, e claro, abusos sexuais cometidos no seio da coabitação. E neste caso particular não era um relacionamento casual ou uma escapadela de fim-de-semana, mas uma relação de dois anos onde apenas se consideraram relevantes os dois dias da ocorrência dos factos.
Não estou a afirmar nada, ou questionar qualquer decisão, mas seria diferente se os dois fossem casados? Sou casado com a minha mulher há mais de 10 anos, se tivermos um dia mau e nos agredirmos mutualmente, um olho roxo a mais num de nós poderá custar a detenção do outro? E como se explica que após ter sido "brutalmente agredida" e vítima de violação num dia, a vítima tenha regressado ao lar do alegado agressor no dia seguinte? E afinal o arguido fez ou não registos videográficos das alegadas relações sado-masoquistas? Se diz que estes vídeos podem provar o consentimento da vítima e não consegue fazê-lo por não ter apresentado essas gravações, como é condenado por gravações ilícitas? Existem outras? É possível estabelecer uma relação entre o comportamento súbito da vítima e os factos dos dias que a agressão ocorreu? Seria a vítima assim tão "ingénua" e dependente do arguido, que não se pudesse livrar de toda esse clima de “temor, medo, insegurança e intimidação”? A advogada de defesa do arguido fala de "comportamento pouco condizente com o trauma pelo qual diz ter sofrido". Muitas dúvidas para se poder falar de uma decisão baseada em factos concretos e objectivos. Mais uma vez, pouco se sabe, mas nada me deixa arrebatado para crer que uma condenação pelo crime de violação seja aplicada de ânimo leve.
Desconheço se o Ou Mun tem acesso a fontes privilegiadas, ou se a imprensa portuguesa não considerou relevante o facto do arguido ter já sido condenado no passado, ainda em Portugal, a um ano e meio de prisão com pena suspensa pelo crime de violência doméstica, o que não constituíndo uma agravante neste caso particular, pode ter tido algum peso na avaliação da sua personalidade, que perante isto será considerada tendencialmente violenta - isto fazendo fé no que diz o Ou Mun. O diário em língua chinesa conta a história detalhadamente, e depois de ter (finalmente) tirar o sentido do artigo em chinês traduzido para inglês e para outra versão em português no máximo "sofrível", dá para entender muita coisa. Muito ao seu estilo, o Ou Mun revela mesmo vários detalhes sórdidos - a dose é sempre reforçada quando se trata de macaenses, portugueses e outros estrangeiros, e o mais importante, revela o nome do arguido. Fui ver o Código Deontológico do Jornalista vigente em Portugal, uma espécie de "10 mandamentos do jornalista", e o Ou Mun passa por cima dos números 7 e 9. Não houve ali qualquer constrangimento no relato dos factos, e foi disso que se tratou: de um verdadeiro relato, e não tendo 100% de certeza se o Ou Mun segue o mesmo código (ou algum), arrisco que não. Ficamos a saber muita coisa, e cada um entenda o que entender, mas eu gosto de saber das linhas por onde me coso. Há ali muito para nos deixar a reflectir sobre aquilo que podemos esperar do futuro da justiça em Macau.
Acho óptimo que a imprensa em língua portuguesa cumpra o que consta do seu Código Deontológico, e aqui parece fazê-lo praticamente com régua e esquadro. Estou em crer que os três títulos tiveram acesso à mesma informação que a restante imprensa, depois foi só consultar a tabela, cortar aqui e ali, e pronto, limpinho. Só tenho pena é que não o faça sempre, e em alguns casos isto seja feito conscientemente ou à marge as evidências - "O quê? Ah? Não, não vi, desculpe". No nº 5 deste Código onde se lê "O jornalista deve assumir a responsabilidade por todos os seus trabalhos e actos profissionais, assim como promover a pronta rectificação das informações que se revelem inexactas ou falsas" talvez fosse melhor averbar "...ou em alternativa assobiar para o lado e fingir que ninguém sabe". É que assim se faz "um bom trabalho de televisão, digno de qualquer estação de qualquer estação em qualquer parte do mundo"? Basta contornar a obrigação de "relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com honestidade"? Assim é batota. É essa deve ser a estação das chuvas no mundo ao contrário. Eu já afirmei, reafirmei e volto a afirmar que a fraude parcial não retira mérito ao trabalho nem ao prémio da sua autora, e quis apenas chamar a atenção para o facto para o bem da reporter. Depois de perceber que ainda lhe falta ver muito mundo, e de um modo geral existe uma arrogância e pedantismo que criam uma muralha de autismo inconcebível, encolho os ombros, mas vou continuar atento. É que eu e muitas pessoas temos dois olhos, e por cima deles uma testa com massa cinzenta lá atrás, e ninguém nos vai dizer que o branco é preto e o sol é a lua porque "estão mais habilitados" para isso, porque não estão - até para dizer que o sol é o sol vão ter que pensar duas vezes e olhar por cima do ombro. Se a jornalista foi aconselhada a não ouvir o "maluquinho", e deixá-lo falar à vontade, fez mal. Os média são um negócio como outro qualquer, tem uma gestão, vende um produto, e eu sou um consumidor desse produto. Ficou mal, só isso.
E no direito que me assiste como cidadão, não sendo este espaço a sede da Justiça, não devendo obediência a quaisquer códigos, e não cometendo a arrogância de me achar dono da razão e deixar quem discorda a falar para as paredes, segui a pista do Ou Mun e fui saber mais. Para o efeito recorri às "páginas amarelas" dos tempos modernos: o Facebook. É uma fonte de informação como outra qualquer, não sendo perfeita, como nenhuma ém ans tal como eu perfeitamente legítima - até para a imprensa, como consta do nº 3 do tal código, mas tenho um artigo pré-preparado sobre esse assunto. Assim precisei não de uma semana e meia, mas de apenas dois minutos para encontrar o casal agora em guerra ainda nos tempos em que tudo eram rosas. É incrível como se pode aplicar uma pena por violação de forma tão implacável como se o arguido fosse um intruso que usou e abusou de uma desconhecida encurralada e indefesa. A justiça não é, ou não devia ser, uma "máquina de sentenças", e não é preciso sequer entender nada de direito ou ser um bom samaritano para perceber que se podiam resolver as coisas de outro jeito. Digo eu, porque repito, não os conheço, mas se ignorasse por completo tudo o que fiquei a saber do crime julgado esta semana, a julgar pelas fotografias, pelos vídeos e pelos comentários dos amigos quer de um quer de outros, assim como os outros que tinham em comum, diria que eram um casal feliz, e que tinham planos para o futuro.
Fico sobretudo assustado com a leveza com que se encara esta situação; o silêncio dos amigos que antes comentavam e perguntavam para quando viria um bebé; do tabu que aparenta se ter tornado o caso, pois conheço vários dos amigos deste casal e nunca vi ou ouvi qualquer comentário sobre o assunto, e até ao julgamento, e não me canso de repetir isto, nem fazia ideia de que algo desta natureza tinha acontecido, ou da existência destas duas pessoas. Agora parece que para o resto do mundo desapareceram também, evaporaram-se na bruma da justiça, e apesar do evidente exagero que me parece esta sentença, vejo toda a gente a assobiar para o lado - é para isto que apelam amiúde à "união da comunidade"? Se é para aparecer nâo vale a pena, já ouvi, obrigado. E o arguido, não tem amigos, gente que se mexa por ele, e fica assim atirado na cadeia durante mais um ano, e agora é condenado? E a sua ex-mais-que-tudo? Demorou assim tanto tempo a descobrir que o seu príncipe encantado era um facínora? E após um relacionamento relativamente longo, com um período de coabitação e tudo, é só isto, "olha o gajo é maluco, paciência". Pode estar carregadinha de razão, mas o que me incomoda é esta frieza com um travo a crueldade, com que infelizmente sou familiar, se bem que consegui manter o pé no travão. E não me estou a meter na vida de ninguém, aquilo que lá está e que eu vejo é o que toda a gente vê. Quis saber mais para confirmar o que já suspeitava, e infelizmente não me enganei: em Macau é tudo cada vez mais perecível, e a única coisa que se vê em frente do nariz é o "eu", depois o "eu" e finalmente o "eu". Bem, seja como vossas senhorias entenderem, e pelo menos ficam já vacinados - e os anjinhos vos protejam de tal sina - caso tenham um problema, e já não vai ser supresa quando "evaporarem" também.
Parabens pelo artigo..... Verdade fundamental....
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