segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A ex-praia do Rocha



Vasco Rocha Vieira, último governador de Macau, fez ontem declarações à agência noticiosa chinesa Xin Hua que foram imediatamente entendidas por muitos como uma tomada de posição do general na reserva contra o movimento "Occupy Central", acompanhado de bajulação ao regime chinês na sua forma mais elementar possível - eles é que mandam, e aceitar esta realidade e fazer pela vidinha. Entendo que haja quem considere que as afirmações do ex-governador sejam inoportunas ou até indesejáveis, mas se há alguém com alguma razão para saber do que fala, Rocha Vieira é uma dessas pessoas. E mesmo que não nutra uma especial simpatia por ele, que sempre se mostrou céptico à continuação dos portugueses em Macau, deixando como único conselho que "aprendessem Mandarim", está aqui um homem que tinha como tarefa garantir uma transição dentro do mais suave e discreto possível - e desconfio mesmo que "suave" e "discreto" são os nomes do meio do general: Vasco Suave Discreto Rocha Vieira. Foi o mediador da escola "daquilo que se pode arranjar", tido muito em conta pelas elites locais, a quem ajudou a cimentar uma posição no contexto da nova RAEM. Poderíamos conjecturar sobre o que seria caso fosse Carlos Melancia à frente das negociações, mas se calhar houve quem o tenha feito muito antes de nós e não tenha gostado muito da ideia.

Foi portanto a Rocha Vieira quem o Estado Português encarregou de conduzir os destinos de Macau durante os oito anos finais do último bastião do nosso Império Ultramarino, e as suas directivas eram sobretudo no sentido de assegurar que tudo se fazia dentro dos padrões mais rigorosos da diplomacia, com base num pressuposto meio volátil: "a amizade secular entre Portugal e a China", uma ladainha que não se cansava de repetir. Ora a China tem um problema com isto da História, especialmente no capítulo da ocupação do seu território por potências estrangeiras, portanto "amigos, amigos, negócios à parte". É também seguro afirmar que o general, participante activo nas negociações que levariam ao consenso final quanto à entrega do território de Macau tenha assistido a demonstrações de "amor não correspondido" por parte do seu parceiro, e se do lado dos portugueses fazia-se o possível para apelar à generosidade da China para garantir a manutenção do "status quo" da região o menos alterado possível, aqui ao lado em Hong Kong as negociações eram marcadas pelo ritmo do murro na mesa. Não surpreende que as coisas estejam como estão na RAEHK, e que Rocha Vieira chame a atenção para a inflexibilidade de Pequim perante as exigências dos manifestantes; se temos uma parte que hesita em fazer concessões pedindo "por favor", o que será quando a postura é de agressividade, negociando pela via do conflito?

Rocha Vieira nunca poderia ser censurado por constatar o óbvio, e apesar da sua formação como militar, conseguiu ficar-se pela vertente económica dos efeitos deste "Occupy Central", abstendo-se de fazer qualquer tipo de previsões (a análise política na região sofre da ideia feita de que pode fazer futurismo): tudo o que disse foi 1) a economia é aquilo com que mais a população se preocupa, o que é por demais evidente, quer daquele lado do Rio das Pérolas, quer deste, e 2) a prosperidade da economia depende sobretudo da estabilidade política. Agora há quem tenha retirado as suas próprias conclusões das palavras de Rocha Vieira, associando-as à sua participação em capitais de multinacionais chinesas com investimentos no estrangeiro, enfim, só posso depreender que todo este azedume provocado por declarações meramente apaziguadoras e onde nem sem evidencia qualquer tom de ameaça a questões mal resolvidas entre ele e alguns dos actuais "sobreviventes" do tempo da sua administração. Se relembrar a soberania da China sobre a região de Hong Kong indicia estar a fazer um "frete", penso que a Xin Hua teria provavelmente outras opções que produzissem maior audiência do que Rocha Vieira. Duvido que na RAEHK alguém se lembre dele, ou muito menos do seu nome.

Já todos sabíamos o que o general pensava, o contrário é que seria de espantar, e os seus comentários vindo a público sobre Macau ou a região contam-se pelos dedos de uma mão, desde que nos deixou abraçado à bandeira no dia 19 de Dezembro de 1999, imagem que fica como registo histórico e lhe valeu os tais 15 minutos de fama. Há quem não goste dele por motivos diversos, alguns de ordem pessoal, o que se compreende, e no que me toca achei censurável que tenha feito aquela "trapalhada" com os 50 milhões de patacas que lançaram a Fundação Jorge Álvares, mas vendo bem, e em retrospectiva, até foi pouco ambicioso. Tem todo o direito a dizer o que pensa, tal como Chris Patten, que se tem demonstrado mais interventivo nas questões do território que deixou em 1 de Julho de 1997 após a sua entrega à China. Rocha Vieira aproveitou o seu consulado para se meter nos negócios, Patten usou o seu como trampolim para um cargo político na União Europeia, em suma, andaram os dois a fazer pela vidinha, como no fundo nós temos fazemos. Todos menos que estão impedidos de continuar a sua vida normal pela tal minoria que quer impôr a democracia através do "Occupy Central". Reparem neste paradoxo: minoria/imposição - tudo a ver com os fundamentais princípios onde assenta a democracia. Só eu que estou a ver o filme ao contrário, se calhar.


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