quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Não referendarás o tacho do próximo


A polémica do referendo foi hoje debatida na Assembleia Legislativa, onde a esmagadora maioria dos deputados se manifestou "contra" a iniciativa das três associações pró-democratas, com Sulu Sou, presidente do Novo Macau, e Jason Chao, líder das associações Sociedade Aberta e Consciência Macau à cabeça. Adoro esta previsibilidade latente dos deputados do hemiciclo, que funcionam quase como um relógio suíço - com todo o respeito pela arte helvética da relojoaria. Na hora de votar a favor ou contra, o mecanismo nunca falha: "Isto hoje é o quê? Lei da proteção dos animais? Salário mínimo? Já sei: é contra"; "Outra vez um diploma dos chatos dos democratas mais o Coutinho? Chumbo neles!"; "Proposta apresentada pelo Executivo? É a favor, mas quem é que se vai abster para isto não parecer tão óbvio? Vá lá, dois ou três que levantem o dedo". E ainda há quem cometa a esperteza saloia de acusar Ng Kwok Cheong e Au Kam San de "só saberem falar mal", e "não apresentarem qualquer proposta de legislação". Basta olhar para a lista de delibarações do plenário dos últimos doze meses para perceber que os únicos requerimentos apresentados para deliberação e reprovados são os dos deputados democratas - e são meros pedidos para a realização de um debate e de uma audição, o que seria se fossem apresentar algo remotamente semelhante a uma lei. E sim, na hora de votar em qualquer coisa que não venha do Olimpo da Praia Grande lá estão os democratas e Pereira Coutinho a pregar no deserto, às vezes com o presidente da ATFPM a contar com o seu parceiro de bancada, Leong Veng Chai, e outras nem por isso, e ocasionalmente lá chega o apoio de Kwan Tsui Hang, se a proposta tiver alguma coisa a ver com assuntos laborais, e a abstenção de meia dúzia, quando têm a certeza que a iniciativa dos "contras" vai ser reprovada sem margem para dúvidas.

As coisas só correram mal quando tudo se preparava para atribuir os estatutos de emir e de sultão aos detentores de altos cargos públicos, e em vésperas de aprovar na especialidade o polémico regime de garantia dos titulares do cargo de Chefe do Executivo e dos principais cargos públicos, deu-se o terramoto cujas réplicas ainda quase três meses depois se fazem sentir. E a maior de todas prepara-se para acontecer daqui a dez dias, com a realização do "referendo civil" (nova capa do famigerado "referendo informal", designação cunhada por Scott Chiang), que os mais próximos da nomenclatura insistem em fazer crer que é "ilegal", mesmo que timidamente e acompanhados de uma sensação esquisita de quem quer lavar as mãos de cinco em cinco minutos. É como daquelas vezes que apertamos o bacalhau àqueles tipos que sabemos de antemão terem hábitos higiénicos duvidosos, como aliviar pruridos anais e outras comichões através do contacto directo das mãos no local afectado, e andamos com o braço pendurado evitando tocar noutra parte do corpo até encontrar ao lavatório mais próximo, e depois disso um supermercado ou farmácia que venda toalhetes húmidos. Tenho estranhado o silêncio de Leonel Alves, jurista de vocação e de profissão, com larga experiência nesta área, mas que se tem mantido isento no meio de tanta pronunciação de outra gente menos credenciada para o efeito. Penso que ainda estará a recuperar das mazelas do tal terramoto que levou ao adiamento da aprovação do regime, e em defesa do qual chegou mesmo a dar murros na mesa do hemiciclo. Ou então delegou competências para o seu colega Vong Hin Fai, como quem diz "agora vai tu fazer este frete". Mesmo assim era interessante ouvir o que pensa Leonel Alves do assunto, nem que fosse para assistir a mais um dos seus actos de heroísmo em forma de retórica de recurso, em defesa da sua dama. Nem Dom Quixote faria melhor pela Dulcineia.

Quem ficou encarregado de reiterar a tese da ilegalidade do referendo foram desta vez os deputados Dominic Sio e Gabriel Tong, ambos nomeados, e coubes-lhes a tarefa de dizer (não de explicar) pela 185ª vez que o referendo/consulta/sondagem dos democratas é ilegal, "porque sim". Enquanto os deputados eleitos pelo sufrágio indirecto são uma dúzia certinha, e por isso podemos apelidá-los de "dirty dozen", já no que toca aos escolhidos do Chefe do Executivo chamemos-lhes antes "os sete samurais". Dominic Sio Chi Wai (蕭志偉) é um deputado nomeado por Chui Sai On que cumpre todos os requisitos para o efeito: empresário de sucesso, figura de proa das associações comercial e industrial de Macau, oligarca (exerce o cargo de administrador de um tal "Grupo Empresarial Família Sio, Limitada") e a tudo isto ainda junta um curso de Economia que tirou numa universidade japonesa, onde aproveitou para fazer amigos importantes, e actualmente é o representante da multinacional japonesa Hitachi, Ltd. em Macau - aposto o que quiserem que quer a AL, quer o palácio e até Santa Sancha estão equipados com tecnologia Hitachi, desde os ecrãs e microfones até aos ares-condicionados. Agraciado com um louvor pelo Ministério dos Assuntos Estrangeiros do Japão, Dominic Sio é um homem que conhece o risco, pois ainda há coisa de dois anos andou a piar fininho durante a troca de galhardetes diplomática entre a China e o Japão, a propósito da soberania da ilhas Diaoyu. Este é um homem que sabe o que é desafiar o sistema, e para tal mandou escrever um texto a condenar a realização do referendo, que depois leu na AL para os outros meninos todos ouvirem. Vou dar-lhe um sinal mais na caderneta, se bem que pareceu-me ter gaguejado numa ou outra frase, e usado o dedo indicador para não perder a linha.

Já Gabriel Tong Io Cheng (唐曉晴) foi ao hemiciclo da Praça dos Aterros do Lago Sai Van com as orelhas vermelhas, resultado dos puxões que levou até ficar com os pés levantados do chão. Então não é que o rapaz afirmou no início de toda esta macacada que o referendo "não é ilegal"??? Agora vai pedir desculpa e que isto não se volte a repetir; ninguém o mandou armar-se em jurista, e mesmo que seja isso mesmo que ele é, com um doutoramento em Direito obtido no celebérrimo "Institute of Law Cass of Chinese Academy of Social Sciences" (que faz Harvard espumar de inveja), isso é uma coisa que não se diz. Lição número um para quem quer pertencer à elite dos dirigentes da gigante empresa "RAEM, Limitada": a verdade carece de validação por parte dos sócios-gerentes, e mesmo que Gabriel Tong tenha licença de notário privado (além de licença de advogado, actualmente suspensa), isso não lhe dá o direito de andar por aí a "autenticar" a torto e a direito. Toca a guardar o carimbo no bolso e não andar por aí a mostrá-lo para impressionar as senhoras, menino. Hoje foi lá à AL deixar tudo preto no branco: "é ilegal, ilegal, ilegal, e pronto!". Mas..."mas nada, já disse que é ilegal, quem diz é quem é, não gosto de ti e agora vou para casa, estúpidos!". E vejam só como estamos bem servidos: Gabriel Tong é não só jurista de renome, como ainda leciona na Universidade de Macau, onde é vice-director da Faculdade de Direito, membro do Conselho Consultivo da (estagnada) Reforma Jurídica do Governo da RAEM, e ainda mebro da comissão especializada para a fiscalização dos problemas relacionados com queixas contra a disciplina do pessoal do Comissariado contra a Corrupção de Macau - isto por miúdos quer dizer que aqui o "Gabi", este poço de coerência e isenção, fiscaliza a malta que supostamente tem o dever de apanhar os corruptos e metê-los atrás das grades. Yupi!

A maioria dos deputados foi na onda da censura do referendo, que é para isso que lhes pagam, mas ao contrário de Dominic Sio e Gabriel Tong preferiram remeter-se ao silêncio, em alternativa a dar mais uma oportunidade aos "Macau Concealers" e afins de registar mais uma "calinada", com honras de exibição no YouTube. O mundo já começa a saber da qualidade dos "políticos" que temos em Macau, e da substância dos seus "pronunciamentos". José Pereira Coutinho ainda quis destoar, chamando a atenção para o facto da população "estar mais atenta ao referendo dos democratas do que à eleição do Chefe do Executivo propriamente dita". Entendo esta afirmação como uma tentativa de tornar isto tudo menos aborrecido, mas permita-me um desabafo em tom informal: "não é nada, pá!". Isso seria verdade no mundo normal, o das pessoas que reagem aos impulsos levados pelas emoções e com o mínimo sentido da realidade, mas não em Macau, meu amigo. A opinião (?) pública por estas bandas, ou uma grande parte dela, só quer saber isto: "o que é que precisamos de fazer e quanto é que nos pagam". Mas para mim isto tudo são duques e senas tristes; se os tribunais não se pronunciaram sobre a ilegalidade ou a legalidade do referendo, quer dizer que não é nem uma coisa, nem outra, e vai lá quem lhe apetecer. E como é num Domingo e não interfere com a minha vida profissional, vou lá também, se não tiver nada melhor em agenda. Era o que faltava dizerem o que devo fazer com o meu Domingo. E por hoje é só isto, e "mánada".

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