quinta-feira, 24 de julho de 2014

Sorria...está em Auschwitz


Uma jovem turista norte-americana esteve no centro de uma polémica quando no mês passado, durante uma viagem pela Europa, visitou o campo de concentração de Auschwitz, na Polónia. Numa decisão um tanto ou quanto precipitada, talvez explicada pelo distanciamente que os americanos têm da História em geral, tirou um "selfie" onde aparece a sorrir, mesmo em frente às camaratas onde eram alojados os prisioneiros. A jovem, identificada apenas pelo nome próprio Breanna, publicou a imagem na rede social Twitter, e não demorou muito até começar a receber mensagens de censura, insultos, e até ameaças. Nas primeiras 24 horas terá recebido cerca de seis mil mensagens a reprovarem a sua conduta - e eu que pensava que os sobreviventes de Auschwitz se contavam pelos dedos, passados 70 anos desde o fim da II Guerra Mundial. Imagino como que o "lobby" judeu terá reagido a isto; devem ter pensado em vestir a pobre rapariga de palestiniana e sentá-la em cima de uma montanha de caixas onde se lia "munições do Hamas" no momento em que uma mira israelita se preparava para dar início a mais um espectáculo de fogos de artifício na Faixa da Gaza.

Primeiro gostava de dizer uma ou duas coisas sobre isto dos "selfies". Portanto, trata-se de apontar a câmara do telemóvel na nossa direcção e tirar uma foto, mais nada. E é isto que chamam "moda", ao ponto de nos últimos meses não se ouvir outra coisa senão "selfies" para aqui, "selfies" para acolá. Desde que inventaram telemóveis com câmara fotográfica, e já lá vão uns bons anos e nem se sonhava ainda com Smartphones, que as pessoas tiram "selfies", só que não tinham um nome especialmente criado para designar essa acção. É simples: alguém compra pela primeira vez um telemóvel com a função de tirar fotografias, e para testar essa função aponta a lente para si mesmo e dispara. Pelo menos foi o que eu fiz, mas se calhar sou "especial", e as outras pessoas aguardaram até encontrarem um bom motivo para experimentar a novidade. Desde que alguém se lembrou de chamar a isto "selfie", toda a gente usa essa expressão a torto e a direito, para mostrar que estão actualizadas, a par do último grito da moda, e que não vivem numa caverna da era do Paleolítico. Esta mania de dar nomes a qualquer parvoíce é a razão porque as grandes multinacionais estão cada vez mais ricas e destroem o planeta, pois basta-lhes lançar uma porcaria qualquer e fazer uma campanha no sentido de que quem não compra é um bardamerdas, e caem todos que nem patinhos.

Mas adiante, a atitude da Breanna parece à primeira vista censurável. Estamos aqui a falar de um local para onde foram mandados milhares de civis inocentes, entre eles mulheres e crianças, e onde além de terem sido gaseados e queimados, alguns deles feitos em sabão, não é motivo de chalaça. E apesar de não se encontrarem ali os restos mortais de ninguém, e o local estar transformado num museu, foi naquele perímetro que esses prisioneiros sofreram uma angústia que só quem passa por ela consegue imaginar. Os engraçadinhos da extrema-direita e outros que pensam que negar o Holocausto é uma forma de demonstrar "firmeza de convicções" falam de boca cheia, desvalorizando o horror por que estas pessoas passaram, por vezes escondidos por detrás do ecrã de um computador, debitando opiniões parvas que mesmo assim podem despertar nos outros sentimentos de raiva e dor, enquanto dão mais uma dentada numa "pizza". Mas não é esse o caso de Breanna. Depois de concluir um período de isolamento sabático de modo a evitar que uma pedra lhe atingisse a boca antes de a poder abrir para se explicar, a jovem conta que no dia em que tirou a fotografia, 20 de Junho, tinha passado um ano desde a morte do seu pai, um investigador e historiador cuja última obra que publicou antes de morrer foi um estudo sobre Auschwitz - a menina sorria porque se estava a lembrar do pai. E agora?

Não pensem que toda a gente que visita este local de má memória do nosso passado recente vai ali com cara de enterro. Para muitos não passa de uma mera atração turística, e para ser sincero ninguém tem a obrigação de se identificar com o sofrimento alheio. Afinal se fosse um lugar "maldito" não faria qualquer sentido estar aberto ao público, e são milhares os que o visitam anualmente, sem precisarem de se submeter ao despiste de qualquer indício de anti-semitismo para entrar. Há famílias inteiras que vão a Auschwitz, tiram fotografias em grupo, todos sorridentes, e a única diferença é que não a publicam no Twitter. E volto a frisar que esse terá sido o único erro de Breanna, a foi apenas um erro de julgamento. Quer dizer, se há saída do campo de concentração existe uma loja de lembranças onde se pode adquirir uma "t-shirt" onde se lê "I survived Auschwitz" (eu sobrevivi Auschwitz), onde está então o sentido de humor? A história existe para que tenhamos referências, para aprendermos com ela, e não para usá-la como arma de arremesso, reavivando-a quando nos convém para molestar aqueles a quem um ou outro acontecimento diz muito pouco, ou nada. Atendendo a que as ameaças e insultos que a jovem recebeu acusavam-na de exibir a sua ignorância, porque não educá-la, em vez de eliminá-la da face da Terra? Assim estão a comportar-se quase como os carrascos de Auschwitz.


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