sábado, 19 de julho de 2014

Provedor do leitor (resposta a um estalinista)


Das vezes que escrevo um destes artigos da série "Provedor do leitor", que responde a comentários deixados no blogue ou na minha página do Facebook que interprete como passíveis de dar uma resposta mais elaborada, este é aquele que mais perplexo me deixou até hoje. Um leitor anónimo, que pela norma do português que utiliza suponho ser brasileiro, deixou no artigo Odeio moscas, de 7 de Dezembro de 2012, um comentário que passo a reproduzir na íntegra, sem alterar uma única vírgula:

Meu amigo, lave suas maos com cloro puro ate derreter sua pele antes de escrever algo sobre Stalin. Voce e essas demais moscas humanas imundas deveriam parar de engolir contrainformacoes ocidentais/trotsquistas e se informar melhor sobre a historia da Uniao Sovietica. Se nao fosse Stalin, a Russia continuaria sendo um pais habitado por famintos com aparencia esqueletica, e talvez ainda nos dias atuais continuaria sendo uma monarquia de quarto mundo comandada pela buguersia injusta que a tanto tempo manteve aquela nacao no verdadeiro sofrimento. Stalin tirou muitas vidas sim, mas ele nao chegou tirar tantas vidas como a midia e livros de manipulacao ocidental alega. Isso foi um mau necessario para evitar uma desgraca muito maior. Voce deve ser mais uma mosquinha dessas que acredita que os eua sao os mocinhos . Saiba que a pessoa que mais odiou Stalin nesse planeta foi Adolf Hitler, alendo mais porque diferente daquilo que vc leu em seu livrinho comprado em shopping, ou talvez na revistinha veja ou na globinho, foram os sovieticos que derrotaram os nazistas. Eh indiscutivel que Stalin trouxe progressos para aquela nacao, que antes dele vivia em uma miseria e um atraso quase semelhante a algum pais pobre da Asia.

Precisei de reler o artigo para entender o cabimento deste comentário quando o tema eram as moscas, e encontrei a razão - uma passagem onde escrevo: "Reencarnar numa mosca é um castigo provavelmente reservado a violadores, pedófilos e profanadores de túmulos. Stalin terá reencarnado numa mosca russa".

Se alguém ainda se questionava se existiam estalinistas à face da Terra noutro país que não a Coreia do Norte, aqui está ele. Álvaro Cunhal não foi o último. Curiosamente o líder histórico do PC português tinha uma admiração por Estaline que causava um certo mal-estar na ala moderada do partido, que depois de 1991, data da extinção da União Soviética, passou a ser a sua totalidade. No entanto há quem ainda considere o homem que dirigiu os destinos da maior do mundo durante trinta anos, e que foi responsável por 20 milhões de mortes confirmadas, num total que poderá ter ultrapassado os 50 milhões, um exemplo de liderança, um grande estadista, ah, pai dos povos.

Comecemos pelo princípio. Lavar as minhas mãos com cloro puro até que a pele derretesse soa a algo que Estaline faria se me apanhasse a jeito, sem dúvida, pois o senhor era um sádico de primeira água. Além de ter procedido à eliminação sistemática de todos os seus adversários políticos até tomar o poder, e depois disso o ter consolidado "limpando o sebo" aos críticos, opositores, ou qualquer um que se atrevesse a não concordar com tudo o que o louco dizia, ainda arranjou vagar para causar a maior catástrofe humanitária da história da Ucrânia, na altura uma das repúblicas soviéticas. O "holodomor" (pesquise s.f.f.), ou "holocausto ucraniano", ceifou a vida a milhões de pessoas na Ucrânia, que Estaline considerava "rebelde". Daí toca a ficar com o total da produção de trigo daquela república do ano de 1931, cujo efeito imediato foi a morte de todo o gado, que ficou sem alimento, e numa relação causa-efeito, a morte de gande parte da população ucraniana.


Repare nestas criancinhas ucranianas, dormindo na paz dos anjos, gratas ao seu herói Estaline por os ter livrado da "burguesia injusta que mantinha o país no sofrimento", e que os tinha reduzido a "famintos com aparência esquelética". Não contente com o número de mortos nesse ano, voltou a ficar com a produção de trigo no ano seguinte, e desta vez intensificou a fiscalização, garantindo que não ficava um grão entalado na folga de uma tábua de um qualquer celeiro. Só quando cerca de dez milhões de ucranianos pereceram à crueldade de Estaline, o heróico bolchevique resolveu deixá-los em paz. "Aprenderam a lição?" - terá ele dito, com um sorriso maroto.



Já sei que me vai dizer que isto são orquestrações do Ocidente, nomeadamente dos norte-americanos, que queriam descredibilizar o regime soviete através de falsos factos e da manipulação de informação. Foram também os americanos que terão imitado a assinatura de Estaline nos documentos que vemos na imagem, uma carta dirigida ao Politburo comunicando a execução de 346 alegados opositores ao regime (em cima), e outro com a lista desses nomes, que entregou ao chefe do KNVB (mais tarde KGB), Lavrenty Beria (em baixo). Acusação? Serem "infiltradores", "contra-revolucionários", "colaboradores trotskistas" e todas essas tretas que os comunas como você ainda acredita. Como pretexto para levar adiante esta "limpeza", esteve o congresso do Partido Comunista da URSS de 1934, onde o seu opositor Sergey Kirov se colocava como provável novo líder eleito pelo Politburo. Estaline manda assassiná-lo, coloca a culpa nos apoiantes da vítima, aproveitando para os eliminar também.



Lavrenty Beria foi o chefe dos serviços secretos depois de 1940, mas antes disso o cargo era ocupado por Nikolai Yezhov, que disponibilizava a Estaline listas com milhares de nomes de pessoas que o KNVB tinha sobre vigilância, e todas as pessoas que essas conheciam, ou que estavam directa ou indirectamente relacionadas com elas. Estaline chegava a ficar a noite inteira a transcrever esses nomes para outra lista, que depois entregava a Yezhov, ordenando que fossem executadas ou mandadas para os gulags, os campos de trabalhos forçados, onde muitas acabariam por morrer. Mas Estaline fartou-se de Yezhov, e mandou-o executar também, e para poder negar qualquer envolvimento com ele, apagou-o das fotografias onde apareciam juntos, como é demonstrado nas imagens acima.


Mas falemos das coisas boas a que o leitor se refere. Hmmm...a reforma agrária, as colectivizações, a terra a quem a trabalha, que maravilha. Sem dúvida que o povo ficou mais feliz e menos faminto, e repare no entusiasmo com que aquelas criancinhas camponesas cavam batatas da terra congelada, sob a vigilância daqueles senhores de chapéu que vemos lá atrás, que asseguravam que não aparecia por ali algum inimigo do povo e levar a colheita para algum burguês capitalista explorador da mão-de-obra alheia. Apesar do sucesso das colectivizações, nos primeiros anos as colheitas ficaram abaixo das expectativas, e Estaline culpou os "kulaks", latifundiários abastados que tinham resistido à reforma. No entanto estes eram apenas na ordem dos 4%, número insignificante para justificar não se ter atingido a meta estabelecida, e Estaline resolveu então incluir nos seus alvos os ex-kulaks, latifundiários que tinham entregue as terras, a bem ou a mal, e procedeu à "deskulakização". Durante mais essa campanha de terror, foram executados mais de 20 mil camponeses, e muitos mais foram mandados para os gulags.


Mas não ficaram aqui os progressos do período que ficaria conhecido por "estalinismo", não senhor. A indústria, por exemplo, conheceu um crescimento acentuado, com a aplicação de dois planos quinquenais, uma estratégia que mais tarde Mao copiou, sem o mesmo sucesso. Deram-se vários progressos no campo da ciência, e mesmo que estes progressos tenham resultado do esforço de cientistas e outros técnicos formados pela corte do czar e que Estaline obrigou a trabalhar como cães, pouco importa - foram progressos. Foi garantido a todos o acesso gratuito à saúde, as mulheres passaram a dar à luz nos hospitais e era-lhes garantido acompanhamento durante toda a gravidez, e como consequência, a mortalidade infantil diminuiu e a esperança média de vida aumentou - pelo menos para os que sobreviviam às execuções. O ensino passou também a ser gratuito, mas era rigorosamente escrutinado e o próprio Estaline contribuiu com algumas "revisões" da sua autoria, especialmente quanto aos eventos da revolução bolchevique, que alega ter conduzido ao lado de Lenine, mas onde nem sequer participou. Isto que vale por dizer que as criancinhas só tinham caca enfiada nas suas cabecinhas, coitadas. Estaline ajudou ainda a livrar o país de edifícios antigos e feios, como no exemplo em cima na imagem, que documenta a demolição da catedral do Cristo Salvador, em Moscovo. Como era ateu, Estaline retirou ao clero todos os seus poderes, e os seus membros foram deportados ou executados. Simples.


E agora a Guerra. Ah, o grande camarada Estaline, um homem que "Hitler odiava". Não sei desde quando ser odiado por Hitler significa necessariamente que se seja bom, mas já percebi que a sua lógica é um bocado...ahem..."esquisita". Mas pronto, ganhou a guerra, mesmo à custa das casualidades que o gráfico em cima demonstra - lá se vai a estatística do aumento da esperança média de vida. Não me surpreende, pois os soldados das linhas na rectaguarda tinham ordens para abater os das linhas mais avançadas que decidissem recuar. Para a frente é que é o caminho, camaradas! E depois da vitória sobre os nazis em Berlim, sabe o que fez o grande Estaline aos homens do Exército Vermelho que lhe ganharam a guerra? Deu-lhes medalhas? Na...isso era demasiado óbvio. Mandou-os para os gulags, pois como voltavam da Alemanha, o seu amigo Estaline temia que eles tivessem ficado "ocidentalizados". Pois, diz que é um vírus que se apanha, e tal.


Mas epá, pronto, obrigado por nos ter livrado dos nazis. Não quero ser mal agradecido, mas talvez devesse agradecer antes ao próprio Adolf Hitler, que ao invadir a Rússia em Novembro de 1941 (durante o Inverno, grande idiota), violou o pacto de não-agressão que assinou com Estaline antes da guerra, numa altura em que os dois combinaram dividir a Europa entre eles. E não, isto não vem nos livros de banda desenhada, mas nos de história, e na imagem podemos ver o ministro dos negócios estrangeiros soviete Vyacheslav Molotov e o seu homólogo alemão Joachim von Ribbentrop, a 23 de Agosto de 1939, em Moscovo. Repare no ar de satisfação do "seu" Estaline ali atrás, todo contente por ter feito uma amigo novo lá em Berlim. Os seus livros é que ainda devem ser os que foram reescritos pelo seu herói do bigode largo, que conta que foi bater no mauzão do Hitler porque queria salvar o mundo.


Não me surpreende que este indivíduo seja considerado o maior criminoso do século XX, e um dos maiores da história, pois os seus instintos homicidas e genocidas eram fruto de um complexo de inferioridade. E digo "inferioridade" no sentido literal da palavra, pois o "homem de ferro" não tinha mais de 1,65 metros, tinha a cara cheia de cicatrizes resultantes do sarampo, e era feio que metia dó. Eram raras as suas aparições públicas, e por vezes recorria a sósias. Nos filmes propagandísticos, parte do seu elaborado culto da personalidade, usava um actor, na maior parte das vezes Mikheil Gelovani, que tal como ele, era também georgiano.


Não sei o que leva o caro leitor a considerar que Estaline seja uma figura que mereça uma gota de apreço da parte de seja quem for, se o próprio partido procedeu àquilo que chamou de "destalinização" logo após a sua morte e sucessão por Nikita Krutchev. Se ainda pensa que tudo isto é "manipulação ocidental", e que mesmo mais de sessenta anos depois da sua morte, e mais de vinte depois da queda da URSS continue a surgir documentação que prova que o homem era um maníaco, e ainda existem testemunhas vivas dos horrores a que ele submeteu o seu povo, então recomendo que procure um bom psiquiatra. O que estou aqui eu a dizer, Deus meu. Você já provou que nem com tratamento de choque se vai conseguir curar. Olhe, melhor sorte na próxima reencarnação. Cumprimentos.


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