sexta-feira, 18 de julho de 2014

Figura da semana: Eric Sautedé


Acho interessante a forma como os chineses de Macau encaram o desaforo, quando este parte de um seu superior hieráraquico. Digo "interessante" da mesma forma que assistir a uma colónia a devorar uma ratazana em menos de duas horas é interessante. Se em Portugal um chefe que seja "sacana" para os seus subordinados, arrisca a que estes lhe façam uma "espera" à saída e lhe cheguem a roupa ao pêlo. Aqui engolem a seco, e fica a remoer a "perda de face", esperando o dia em que esteja ele numa posição de vantagem, para "ajustar as contas" com o agressor. Isto falando da administração, é claro, pois no sector privado, a chefia pode sempre optar pelo despedimento, mesmo sem justa causa, e o desgraçado que perde o emprego raras vezes bate o pé, temendo vir a fazer parte de uma "lista negra" virtual, e verem-lhe fechadas as portas à possibilidade de encontrar novamente trabalho. Nas teorias da conspiração mais tenebrosas, existe mesmo a possibilidade de "nem os filhos" conseguirem arranjar quem lhes dê emprego. Eu fico um pouco sem entender se isto é mesmo verdade, e nesse caso é humilhante, e devia valer pelo menos um bom par de açoites ao autor desta maquiavélica estratégia de desumanização, ou se é apenas um pretexto para justificar a uma certa cobardia, com uma dose de realismo que leva a concluir que mais vale a pena desistir e virar douradinhos de pescada, do que estrebuchar até ficar com as tripas todas de fora, e não servir nem de comida ao gato. É a tal "tradição milenar chinesa", herdada dos tempos dos imperadores, que punham e dispunham da vida de alguém, dependendo de que lado de cama acordou nesse dia. São as "intrigas palacianas" que ainda é comum encontrar na sociedade chinesa actual, mesmo em Macau e Hong Kong, onde no papel existe um compôndio de normas que nos dizem que esta conduta "é errada", e quem persista nela "será punido". No papel, meus amigos. No papel. Esta subserviência tem também a ver um pouco com o nível de educação de cada um, e a "mistura explosiva" dá-se quando temos um chinês de meia-idade com o ensino básico, sem formação profissional e originário de uma família modesta, que lhe ensinou desde sempre que os patrões e qualquer pessoa com mais dinheiro que ele "tem sempre razão".

O professor Eric Sautedé, recentemente afastado das funções de docente da cadeira de Ciência Política na Universidade de S. José, não é chinês, é francês. Não tem o ensino básico, mas sim o superior, e não sendo um "manda-chuva" nem um empresário podre de rico, o seu emprego garantia-lhe que não dependesse de "engolir sapos vivos" para poder garantir a sua próxima malga de arroz - e garanto que esta referência aos "sapos", tratando-se aqui de um francês, é meramente acidental. Desconheço que formação lhe deram os seus pais, mas sendo estes igualmente franceses, duvido que o tenham "amolecido". Estes são os tipos que onde há 125 anos eram oprimidos como aqueles que agora curvam as costas aos seus amos na China, ficaram fartos, e não se limitaram apenas a levantar-lhes a voz: levaram-nos a um certo barbeiro que acidentalmente lhes levou mais que a barba e o cabelo. O despedimento de Sautedé encheu as páginas dos jornais, causou indignação entre os pensadores livres, e quando o pó assenteu contou as razões do seu afastamente. Primeiro todos os dedos estavam apontados para o Padre Peter Stilwell, reitor da USJ, mas Sautedé retira a este um pouco do peso da cruz e vai directo ao topo, responsabilizando
o bispo José Lai pelo sucedido. O bispo, imaginem! Sua eminência benzeu-se, e agarrado ao rosário exclama estupefacto: "eu???". O francês, republicano e laico como ele só, insiste: "sim, você", e diz ter provas e tudo. Que ousadia, apontar o dedo à principal figura da Igreja, acusando-o de lhe tirar o pão. "Sim, mas foi ele", garante Sautedé, que é professor de Ciência Política, e não de Religião e Moral, e pagavam-lhe para ensinar Política, e não para pregar o Evangelho. "Mas este é um servo de Deus!", exclamam os crentes mais indignados, temendo a fúria divina. "Então diga lá ao chefe que eu quero apresentar queixa do seu servo", responderia calmamente Sautedé.

Por ter finalmente dado início a uma tão necessária segunda Renascença, Eric Sautedé é a minha figura da semana. E com distinção.

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