segunda-feira, 21 de julho de 2014

E depois do caos?


Tivemos um fim-de-semana de tempo bastante agradável, apesar da passagem do tufão Rammasun pelo continente chinês, que levou a Metereologia a prever chuva, tivemos dias de céu limpo e algum sol, e mesmo assim com temperaturas relativamente amenas. Pelo menos não senti aquele "bafo" típico dos meses de Julho e Agosto, com o astro-rei teimosamente escondido atrás de um céu quase sempre cinzento, e uma humidade que nos cai literalmente em cima, como chuva invisível. Quem também deu um da sua graça foi Agnes Lam, que depois de um período de ausência que se estranha, reaparece qual raio de sol após a tempestade. Pronto, já sei que alguns estão a pensar: "lá vai este gajo outra vez malhar na coitada da Agnes Lam". Mas não, nada disso, se bem que gostava que ela nos explicasse por onde é que andou durante quase um mês onde se deu uma espécie de Maio de 68, com alunos a exibir slogans, e professores demitidos e debates sobre a liberdade académica, ou a falta dela, tanto tumulto, meu Deus. Pensei que a sua habitual verve opinativa fosse oportuna nestas circunstâncias, uma vez que ela própria é docente universitária, e isto diz-lhe directamente respeito, pronto. Além do mais tenho que aturar a minha mulher, que diz que "vocês portugueses é que gostam muito dela", e fico sempre sem graça. Mas do que venho aqui falar não é de Agnes Lam, mas sim do processo de eleição do IV Chefe do Executivo da RAEM, que teve recentemente o seu início, e que tem o particular (aborrecido, aliás) de já se saber o desfecho.

Agnes Lam veio a propósito porque finalmente quebrou o silêncio sabático a que se remeteu durante estes últimos tempos, e durante uma campanha humanitária (que lhe fica sempre bem) de recolha de soutiens para ajudar as mulheres de Moçambique a sairem da prostituição (!), fez um comentário sobre a eleição que temos à porta. Diz que "muito provavelmente só vamos ter um candidato", escusando-se o "muito provavelmente", até porque agora sabemos que o candidato anunciado já obteve um número de apoios muito acima do mínimo exigido, e ainda a procissão vai no adro, mas que mesmo assim gostaria que Chui Sai On "se aproximasse da população" durante a campanha, que "desse mais entrevistas". Sim, isso, era bom, eu sei. Que nos dissesse o que pensa fazer para resolver os problemas que nos afectam e cuja solução vem sendo eternamente adiada, ou que nos esclarecesse algumas dúvidas que nos atormentam, ou ainda que garantisse peremptoriamente que não há nem vão haver certos atropelos que se diz virem acontecendo recentemente, nem equívocos de espécie alguma. E já agora podia adiantar-nos como vão ser estes próximos cinco anos, e todos esperamos que sejam cansativos, no bom sentido, até para podermos prever o que vem a seguir, que duvido que ele próprio saiba também.

Parecem não existir dúvidas que Chui Sai On será reconduzido no seu cargo para um segundo mandato, e por inerência. A habitual "sombra" desta nomenclatura inaugurada por Edmund Ho, e que dá por nome Ho Chio Meng, já veio dizer que não se candidata e apoia o actual Chefe do Executivo, Isto vale por dizer que só uma grande hecatombe impedirá de termos o mesmo inquilino em Santa Sancha por mais cinco anos. Quer dizer, isto de cinco anos tem muito que se lhe diga, pois o primeiro ano, ou os primeiros dois, serão decisivos. Prevê-se que o início do segundo mandato seja marcado por uma grande actividade por parte de Chui Sai On, muitas medidas tomadas, muitas operações de charme no sentido de recuperar a sua imagem - e isso é bom para nós, lógico. Depois de dois anos, mais coisa menos coisa, será necessário sentir o pulso ao território, saber se as medidas a implementar surtiram efeito, e sobretudo se a população está mais satisfeita, pelo menos tomando como medida a situação neste momento. Caso o "feedback" seja positivo, a continuidade será garantida. Caso contrário, é difícil prever o que pode acontecer, mas desconfio que o recente diagnóstico de gota tornado público por Chui Sai On pode-lhe garantir uma saida airosa, sem "perder face".

Quem esteja a observar tudo isto de fora, vai pensar que o desempenho de Chui Sai On no cargo de Chefe do Executivo nos últimos cinco anos foi "mau". Nada disso, não foi mau nem bom: não foi. Se há algo de que o podemos acusar é de inércia, de "não mexer para não estragar". Se há cinco anos parecia reunir consenso geral para suceder a Edmund Ho no cargo, agora fica-se com a sensação que mais ninguém quer o lugar, e ter que fazer o que não foi feito, e ainda o que vem pela frente durante os próximos cinco anos - e que não vai ser pouco. O próprio Chui Sai On não parece muito incomodado com isso, ou pelo menos tanto quanto alguns elementos da sua órbita, que têm acusado um "nervoso miudinho" com a sucessão de acontecimentos que teve início em Maio, após os protestos contra a polémica proposta do regime de garantia dos titulares dos altos cargos. Dá a entender que muitos preferem a continuidade do actual CE porque têm projectos por terminar, e é irrelevante que os projectos que fazem falta a Macau e nem sequer foram ainda iniciados se concretizem ou não. Para a principal indústria do território e orgão vital da economia, o jogo, parece definitivo que os seus actores, os casinos, prefiram negociar a renovação das concessões com "o diabo que já conhecem". E estas renovações estão para muito breve.

Pessoalmente não acredito que Chui Sai On tenha deixado o território estagnado durante os últimos anos por conveniência pessoal ou por incapacidade para desempenhar o cargo. Por ele dava uma casa a cada família, construía um hospital público em cada bairro, trazia os melhores médicos, professores, técnicos de toda a espécie e feitio - contando que não saisse do seu bolso, é claro. Ao contrário do seu antecessor, Edmund Ho, que parecia controlar o "jogo" mesmo sabendo que não jogava sozinho, ao actual CE parece indiferente que desempenhe o papel principal ou não. Para muitos de nós, classe média, funcionários públicos ou empregados por contra de outrem, o vencimento do Chefe do Executivo (o mais elevado de um titular de um cargo político em todo o mundo) é uma quimera, mas para ele são "peanuts", e não compensa certas "chatices" que possa vir a enfrentar caso tenha um papel mais interventivo. Talvez por isso tenha pensado que o trabalho já estava todo feito, que Edmundo Ho plantou, adubou e cultivou, e que nestes dez anos bastava fazer a colheita. Confiou ainda que a paciência da população era infinita, e esta deixou de tolerar os muitos "golpes" quando se avançou com a tal proposta do regime de garantia. O "timing" foi o pior, sem dúvida, mas o conteúdo deixava também no ar o podre odor a suspeita.

Chui Sai On chegou ao cargo em 2009 e olhou para os três pilares que sustentavam Macau: o económico, o social e o político. Deu dois socos em cada, achou que eram sólidos e resolveu deixar correr o tempo. Só que estes pilares eram um pouco como a estrutura do do edifício Sin Fong, de má fama, e se por fora parecia tudo bem, por dentro havia mais areia do que betão armado. No económico o maior erro terá sido a interpretação muito única que fez do sistema liberal, deixando claro que "tudo era permitido", e que "o mercado é livre". Em teoria isto é o que um território com tradição mercantilista quer ouvir, mas o efeito foi perverso: os especuladores imobiliários entenderam com isto ter "carta branca", e em poucos anos a aquisição de habitação própria passou de "complicada" a "ilusória". A inflação tornou-se galopanete, e qualquer medida que fosse tomada era tornada pública, naturalmente, e só fazia com os preços dos bens voltassem a subir. Com que então o mercado é livre, não é? Bem vindo ao faroeste. No âmbito do social, que sempre dá para atenuar eventuais problemas económicos, também pouco ou nada foi feito. O segundo hospital público nunca arrancou, faltaram as creches, o ensino perdeu em qualidade, e não sei se foi o meu gosto que se tornou mais refinado, ou se perdi o interesse, mas nos primeiros tempos da RAEM ia a mais espectáculos ou concertos num ano do que aqueles a que fui nos últimos quatro ou cinco anos - perdeu-se o pão, e perdeu-se o circo. A juntar a isto apareceram problemas novos, casos do trânsito ou das multidões, resultado da desenfreada entrada de turistas do continente, que a oferta em termos de hotelaria também não conseguiu acompanhar.

O terceiro pilar, o da política, é talvez o mais importante, e foi também o mais ignorado. Foi neste particular que Edmund Ho se excedeu, pois este decidia, encontrava soluções, apaziguava os ânimos em situações de crise, e tinha mão na sua equipa, mostrando sempre que estava no pleno controlo das operações. Antes do famigerado caso Ao Man Leong, que marcou o fim do estado de graça desta geração de dirigentes, o primeiro CE da RAEM tinha uma imagem resplandecente, respeitado pela população, pelos representantes dos diversos grupos e associações, e pela própria China, que não se cansava de o elogiar, e de onde ele voltava sempre com mais um louvor. Muitos se recordarão certamente dos tempos em que Edmund Ho ia a Pequim acompanhado de Tong Chee-Wa, o primeiro CE da RAE de Hong Kong, e os "mandarins" puxavam as orelhas a este enquanto lhe diziam para por os olhos no nosso chefe. Longe vão esses tempos, e agora permitam-me citar a afirmação de Eric Sautedé, que segundo o próprio lhe veio a causar sarilho: Chui Sai On não tem carisma. Não renovou o elenco governativo quando teve a oportunidade de o fazer, dando a entender que tinha receio de "deixar cair" alguém, e que em vez de um Governo tinhamos um grupo de "compadres", e aqueles que ainda acreditavam que a modalidade da nomeação de parte dos deputados da AL pelo Chefe do Executivo era uma forma deste reforçar o hemiciclo com pessoas de qualidade viu a teoria ir por água abaixo nas últimas eleições. Só o facto de Fong Chi Keong ter sido nomeado, o que em teoria revela "confiança" da parte de quem o nomeou, é já por si bastante grave. Fong Chi Keong não teria lugar numa assembleia de uma qualquer República das Bananas onde todos deputados fossem praticamente analfabetos.

Na falta desse carisma ou de uma imagem de sensatez e autoridade optou por lançar ou fazer passar através dos seus imediatos a famosa "teoria do caos": por muito que não gostem de nós, a alternativa seria muito pior. Acenou-se com um "papão" vindo da China, que supostamente "queria assim" cada vez que se tomava uma decisão impopular, e transmitiu-se a ideia de que caso a população não estivesse satisfeita com o que tem, viria alguém mais inflexível, que impusesse a disciplina e normas mais rígidas de conduta. Agora já não cola; e depois? Que venham. Não somos titulares de altos cargos públicos a título ad eternum, não somos os habituais beneficiados com os projectos de obras públicas ou detentores dos monopólios, nem somos nós os "clientes habituais" dos fundos da Fundação Macau, então que diferença nos faz, se deixam os peixes graúdos comer o pão todo que atiram ao lago ou não? E porque insistem em nos dizer para nos portarmos bem, caso contrário a China toma as rédeas e impõe a barra dura? Não é isso que ouvimos de Pequim cada vez que reiteram a confiança na aplicação do segundo sistema em Macau. Estão a chamá-los de mentirosos, ou apenas de fingidos?

Claro que todos preferimos que as coisas corram bem para Chui Sai On, e não queremos que os mais de 30 anos que restam de segundo sistema sejam de rigorosa preparação para o momento em que vamos ser absorvidos pelo primeiro. Mas e agora, como vai o chefe descalçar esta bota, e passar-nos uma mensagem de que está tudo bem e não há razões para temer o futuro. O que gostariamos que nos dissesse era quem vamos ter a dirigir os destinos de Macau em 2019, pois sabendo que estes estão todos de saída, não nos são dadas quaisquer pistas sobre quem os vai substituir, e renovar a nomenclatura. Era útil que começassem a dar a cara, a intervir, a aprender para depois não se dar a mesma desculpa da "falta de experiência", que a certo ponto deixou de colher entre a opinião pública. Vamos lá então arregaçar as mangas, e recuperar o tempo perdido nestes próximos cinco anos. E vamos esperar que sejam mesmo cinco. Era bom sinal.



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