quarta-feira, 16 de julho de 2014
A ococracia do tanto faz
Dois dias após a sua eleição como presidente da Associação Novo Macau Democrático (NMD), Sulu Sou Ka Hou deu uma entrevista ao Hoje Macau, conduzida por Cecília Lin. Nesta sua primeira apresentaçÒo digna desse nome à comunidade lusófona do território, fala dos seus planos, diz que a associação que preside se encontra "unida", apesar das tentativas feitas em dar a entender o contrário, e diz que "não vai ser nem muito radical, nem muito suave". Curiosamente esta esta é uma pergunta que habitualmente se faz aos elementos do chamado sector pró-democrático, de quem se espera sempre um ou outro "número de circo". Sulu Sou tem-se evidenciado mais pela forma energética com que faz activismo, optando pela via da retórica, sabendo como se comportar nos grandes palcos e em frente às multidões, apesar da sua jovem idade, apenas 23 anos. É difícil não simpatizar com ele, mesmo que não seja fácil identificar-se com os seus princípios, pois este é um rapaz que parece ter a certeza do que diz, não gagueja, tem sempre uma resposta na ponta da língua, e um ar sempre fresco, de quem depois de uma retemperadora noite de sono, levanta-se da cama para mais um dia de luta.
A sua grande batalha, diz ele, é "promover a democracia". Já o ouvi dizer várias vezes que é preciso aplicar a democracia em Macau sem mais mas, em vez de fixar datas para isto e para aquilo. A democracia não pode esperar. É necessário implantar a democracia. Só com a democracia é que vamos lá. Mas...democracia? O que se entende por "democracia", e que tipo de democracia queremos nós? Sulu fala de "promover a democracia" como quem fala em "promover a vacinação contra a gripe", ou de "trazer a democracia para Macau" como quem pensa em trazer um artista de renome para actuar na arena do Venetian. É que temos vários tipos de democracias, e uma miríade de exemplos, uns felizes, outros nem por isso. Há democracias exemplares, como as do norte da Europa; outras apenas funcionais, como em praticamente todo o Ocidente; e outras falhadas, casos de alguns países da África e de grande parte da Ásia. E já que é na Ásia que estamos, mais precisamente na China, falar de democracia dá pano para mangas. Ele que me perdoe, mas quando fala de "democracia", o que Sulu está a querer dizer exactamente é "o contrário da China". Uma democracia com pés e cabeça é algo que não está ao alcance de Macau, nem a longo prazo.
Pergunta sacramental: a população de Macau sabe o que é democracia? No caso muito improvável da resposta ser "sim", é a democracia que querem? E de que tipo? O ocidental? Talvez não, e prefiram antes uma democracia que mais se coadune com a sua cultura e os seus valores; uma "democracia de características chinesas", chamemos-lhe assim. O problema é que tal coisa não existe. Vai o Sulu Sou e o resto da malta jovem do NMD inventar uma para nós? Não quero cometer aqui o desplante de dizer que a "a população de Macau não está preparada para a democracia", como fazem normalmente os ditadores acomodados a um sistema que lhes trás proveitos e os enriquece, deixando a maioria do seu povo na pobreza, controlado por um estado opressor e musculado. É pior do que isso, o qque se passa em Macau. Para que se chegue à "democracia" na forma como a conhecemos, é preciso em primeiro lugar que exista consciência cívica, e depois disso consciência política, seguindo-se a formação de forças - ou partidos, se quiserem - assentes numa ideologia, que apresentem propostas abrangentes no sentido do bem comum, e finalmente realizar eleições transparentes onde se vote livremente e os candidatos façam uma campanha onde primem pelo debate de ideias. Não temos uma coisa, nem outra, nem outra, e destas últimas duas ou três é melhor nem falar.
O que existe em Macau é um sistema de "checks and balances", e que o vai aguentando o barco sem que este se esmague contra os rochedos do caos é o sistema jurídico de matriz ocidental que vigora, e o liberalismo económico, que apesar dos (muitos) defeitos, vai funcionando. E o alicerce de tudo isto é o jogo, claro, de que a dependência se tornou tal que deixou a economia praticamente em "piloto automático", e com a China a providenciar a "matéria-prima", ou seja, o grosso dos jogadores. Como é que se pode falar de democracia se não existe sequer autonomia? A população "desconfia" dessa democracia, pois foi-lhes ensinado que é um complô anti-patriótico para derrubar o regime, "que cuidou deles e lhes deu de comer". Como podemos censurar os chineses de Macau por aceitarem de mão-beijada tante injustiça e desigualdade? O território foi um aquartelamente colonial até 1974, e mesmo depois disso nunca foi possível chamar os chineses e dar-lhes noções de "consciência cívica", ou conceitos básicos sobre "política". Durante os tempos difíceis do pós-guerra, foram os "patriotas" que cuidaram deles, dizendo-lhes o que sentir e o que pensar, e todo o resto são "ciladas montadas pelo inimigo". Mesmo as novas gerações, as segundas e mesmo as terceiras, acomodaram-se ao sistema. Têm consciência do que é certo e errado, são mais cosmopolitas e exigentes, mas não se atrevem a desafiar o sistema - estão mais preocupados com as suas carreiras e famílias.
A cultura chinesa não de adapta com os valores democráticos ou sequer pelos valores humanistas produzidos pela revolução francesa. Nunca existiu na China um sistema multi-partidário, e qualquer divisão, mesmo que em duas facções, deu sempre o mesmo resultado: a guerra. Os que estão por baixo, o povo, pouco se importam se são os nacionalistas, os comunistas, os vegetarianos ou os canibais que estão no poder: são os que mandam, ponto, e não ousam desafiá-los. Basta ver o que se sucedeu após a detenção de Ao Man Long, com os residentes de Macau a prefirem evitar o assunto. E que para eles não foi só o ex-secretário falhou, mas toda a cúpula do poder. É como se fosse uma família onde tinha acabado de falecer um dos membros. Recuando mais atrás, após os incidentes de Tiananmen em 04/06/1989, as elites "patrióticas" foram encostadas à parede e obrigadas a dizer de que lado estavam. A maioria disse "do lado dos estudantes", engolindo a seco, e felizmente para eles a bruma dissipou-se rapidamente em Pequim e foi restabelecida a normalidade, antes que tivessem que tomar partido de um dos lados. É que para estes pouco importa quem ganha - se for o partido, eles fazem-lhe juras de amor eterno; se os estudantes, eles até voltam aos bancos da escola, se for preciso.
O que temos aqui, no fundo, é uma ococracia, o poder do vazio de ideias, do nada, do vácuo. Pensar-se em democracia sem que exista consciência cívica e política, que se elucide a população sobre conceitos como a ideologia, ou até o sacrifício pelo bem comum nada feito; é como construir uma casa pelo telhado. Se lhes perguntarem se querem "democracia", eles respondem: "e o que ganho eu com isso?". Portanto falar de democracia em Macau é falar de boca cheia. O que Sulu Sou pode aproveitar desta visível onda de descontentamento, com os residentes a sentirem que a sua qualidade de vida se vai perdendo, e os grandes projectos constantemente adiados, é promover o trabalho sim. Já que a Assembleia Legislativa, que tem no papel o dever de fiscalizar o desempenho do Executivo, faz antes de seu cúmplice, que haja alguém que fiscalize, e que mostre que a população começa a ficar atenta ao trabalho dos seus líderes e representantes. Isso já é um bom caminho, lançar as sementes da intervenção da sociedade civil na vida do território. Depois logo se vê.
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