segunda-feira, 14 de julho de 2014

A carpete


Tem sido uma roda viva desde que a Associação Novo Macau Democrático anunciou a realização do famigerado "referendo informal". Depois do habitualmente discreto Alexis Tam ter metido os pés pelas mãos, hoje foi a vez de outra figura insuspeita deixar o ar a sensação de que se está aqui a mexer em algo muito sensível: o presidente da Associação dos Advogados, Jorge Neto Valente. O causídico, conhecido pelo seu lado crítico e normalmente sereno na análise dos temas, até os mais fracturantes, chegou a irritar-se ao comentar as pretensões dos pró-democratas em realizar aquela espécie de consulta pública, a que erradamente resolveu chamar de "referendo", algo que não só não está previsto em qualquer legislação, e é omisso tanto como na Constituição da R.P. China, como na Lei Básica, a mini-constituição da RAEM. Neto Valente lembrou isso mesmo, que a pretensão do NMD ou do seu satélite do Consciência Macau não produz qualquer efeito jurídico, e por isso mesmo não pode sequer ser considerado "ilegal". Tudo bem, podia ter ficado por aqui e já nos teria deixado esclarecidos sobre o que pensa do assunto, mas ainda acrescentou que a intenção do grupo é apenas a de "provocar", e de agitar as águas, lançando um debate sobre a democratização do sistema político da RAEM, ao mesmo tempo que aqui ao lado em Hong Kong esta tem sido uma dor de cabeça sem fim para o executivo de C.Y. Leong. Neto Valente foi subindo de tom, e a certo ponto perdeu as estribeiras, relacionando com caso com o processo eleitoral do CE que se inicia amanhã, com a apresentação formal da candidatura de Chui Sai On, e fala em "quererem prejudicar UM candidato", e que isso "é que é errado e ilegal" - disse isto num tom deveras irritado.

Antes de perguntar ao Dr. Jorge Neto Valente qual é o outro candidato a favor do qual visam prejudicar este, voltemos a Alexis Tam. O porta-voz do Executivo nunca esteve tão vocal no que toca à sua opinião. E ele que sempre se pautou pelo rigor e pela seriedade, e até alguma rigidez na hora de sair do âmbito das suas funções. No Sábado referiu-se à questão do "referendo" como se fosse uma ameaça terrorista séria, e pediu contenção à população, em nome da "harmonia" - já cá faltava essa. Quando um jornalista lhe perguntou se a hipótese da iniciativa do NMD ir para a frente, isso era considerado um acto de ingratidão com o Governo Central. ele respondeu com um ar de quem ia desatar a chorar porque se chegasse e o pai soubesse de alguma maldade que ele fez, e com uma voz entremelada respondeu com outra pergunta: "o que é que acha?". Posso responder eu? Eu não acho nada. O que quer o sr. Alexis Tam exactamente dizer com isto? Tem medo do quê? O que importa se uma associação quer realizar uma consulta sobre uma questão, que como já vimos não mexe num cabelo do actual método de eleição do CE? O que há por detrás desta questão que leva a que os mais pacatos se tornem maus? O que leva esta assunto a ser tabu, e fazer a nomenclatura tremer que nem varas verdes?

Bizarra foi a referência a uma reunião ministerial do turismo da APEC, que a China propôs que se realizasse em Macau, apesar do território não ser membro daquela organização, e de como devíamos estar gratos por tal honra. O quê? Alexis Tam fala disto como se fosse uma questão de vida ou de morte. A realização desse evento vai produzir algo de positivo para a RAEM? Vai resolver de uma assentada os problemas da inflação, da habitação, do trânsito e todos os outros? Não realizar essa reunião vai deitar por terra "tudo o que foi alcançado nos últimos 15 anos"? Não entendo, sinceramente. O desespero de Tam é de tal ordem que insiste nos mesmos malabarismos na interpretação do conceito de "ilegal", insistindo na tecla de que "tudo o que não está regulado ou é omisso na lei, é ilegal". Isto é gravíssimo. Como é que a realização de uma espécie de consulta pública privada viola a Lei Básica e por isso é ilegal? A Constituição da RPC é "omissa" quanto ao referendo, e por isso quem tente realizar um "está a ir contra ela"? Esperem lá, a Constituição da RPC vigora em Macau? E já agora se eu perguntar o que acha do método para a aleição do CE, estou também a violar a Constituição? E lá diz se eu posso ter um piriquito em casa? É que se não diz, vou já arrancar a cabeça ao Piu-Piu e mandá-lo pela sanita abaixo. Não sei porquê, mas li nas entrelinhas de toda esta dissertação meio choné do porta-voz do Governo um primeiro acenar da lei emanada do artº 23 da Lei Básica, que penaliza crimes contra a Pátria, nomeadamente a secessão, traição, sedição e subversão - e atenção a isto da subversão, pois o próprio Chui Sai On já deu a entender que os actos só poderão interpretados como legais ou ilegais "depois de acontecerem". Muito suspeito, e só espero estar redondamente enganado.

No meio de toda esta confusão, o Gabinete de Ligação Central já veio dar uma mãozinha ao Executivo, apoiando-o na oposição ao "referendo", mas não especifica se também se opõe, e não se atreve a conjecturar sobre se é ou não ilegal. Enquanto não entendemos nada do que se passa, e tudo indica que nos andam a esconder alguma coisa, pelo menos dá para entender que o Executiov está deveras preocupado com o caso. Curioso, logo eles que nunca tinham dado grande importância aos democratas, mesmo a alguns dos seus excessos. Porquê agora, e com um tanto mediatismo, e até com alguns laivos de loucura. E este respeito, recomendo a leitura do editorial de hoje do Ponto Final, da autoria da sua directora Maria João Caetano, que levanta algumas questões pertinentes, e destaco esta passagem: "Estas últimas [autoridades da RAEM], infelizmente, acusam o pânico de terem lido recentemente os títulos da imprensa internacional (Guardian, Wall Street, Al Jazeera) que anunciam um referendo sobre a democracia para Macau – os mesmos que terão sido lidos em Pequim e que, à luz de alguma incompreensão, serão vistos como um fracasso do actual Chefe do Executivo, Chui Sai On, que em breve irá sozinho pedir 400 votos para se lançar a um novo mandato". Questiona-se ainda a forma torpe como o Governo tem lidado com o caso do "referendo", que como referi aqui ontem, deveria desvalorizar, e até atender às pretensões de quem quer exercer apenas um direito.

E isto leva-me de volta ao Dr. Neto Valente, e este fala em "prejudicar um candidato". Pois, talvez isto aborreça o chefe, mas ele é o único candidato. Não é como se a sua eleição dependesse da realização ou não do "referendo". Ou será que Pequim terá dado sinais de desgaste com o desempenho do Executivo, com as manifestações recentes de descontentamento, e considero esse desafio aos moldes com que se processa a eleição do CE um ultraje, que seria a "última gota de água"? Talvez assim se explique porque diz o presidente da Associação dos Advogados que realizar o referendo "não é ilegal", mas que aborrecer o Chefe do Executivo já o é, e manifestar essa contradição quase em jeito de ameaça? Sinceramente começam-nos a assustar, e se nunca primaram muito pela proximidade da população com os meandros da política, talvez agora fosse uma boa altura para nos explicar as consequências de exercer apenas as liberdades que ficaram registadas, preto no branco, na redacção da Lei Básica. Será que aquilo que têm escondido debaixo do tapete é tão hediondo que nos deixava de cabelos em pé? A não perder os próximos capítulos.



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