terça-feira, 29 de abril de 2014

Nós, os vivos


Jason Chao e Sulu Sou, conhecidos elementos da Associação Novo Macau (ANM), pediram em nome da associação que eles próprios criaram, a Open Macau Society (OMS), a utilização do espaço do Largo do Senado no próximo dia 4 de Junho, de forma a assinalar a passagem de mais um aniversário do massacre da Praça Tiananmen de 1989, quando o exército oprimiu com recurso a meios violentos uma manifestação de estudantes, que se tinham juntado mês e meio antes na principal praça da capital chinesa, exigindo do Partido Comunista Chinês reformas democráticas e uma maior abertura do regime. Como já é hábito, o "regime" de cá, o tal do "segundo sistema", recusou o pedido, alegando motivos diversos. O principal é o que já todos sabem: o espaço foi previamente reservado por outra associação, que mais uma vez comemorará num palco improvisado junto à Estação Central dos Correios e em frente ao edifício do IACM o Dia Mundial da Criança, com três dias de atraso.

Enquanto um grupo de crianças - inocentes criaturas, manipuladas e sem culpa nenhuma - vão ficar ali a dançar com a cara pintada, assemelhando-se ao rabo de um babuíno, para meia-dúzia de gatos pingados que muito provavelmente são pagos para ali estar meia hora a olhar para aquilo, alguns metros mais à frente, perto da Igreja de S. Domingos, vai-se realizar a vigília em memória dos jovens estudantes que pereceram em Tiananmen naquele fatídico dia, vai agora para 25 anos. Os responsáveis por este lamentável espectáculo vão quase de certeza estar em casa, refasteladas no sofá, ou na sauna com as "mui-muis", ou ainda num restaurante de luxo, a brindar a mais um trabalho bem feito no sentido de manter a curvatura descendente e oblíqua da espinha dorsal da populaça que por aqui se arrasta, nem morta, como os estudantes em Pequim há um quarto de século; nem viva, como as criancinhas que vão estar aos pulinhos no Largo do Senado; nem vivaça, como os espertalhões que vão mantendo esta paz podre a quem teimosamente chamamos de "harmonia". Mortos-vivos, zombies, sim somos nós, os alegadamente vivos desta cidade que se diz do "santo nome de Deus". E ainda querem que eu simpatize com Deus?

Sim, já sei que "é mesmo assim", e que "vem sendo assim", desde 1995. Portanto, nos dias seguintes aos eventos de 4 de Junho de 1989 na Praça Tiananmen e durante os primeiros cinco aniversários do massacre, foi permitido velar os mortos, e a partir daí "kaputz", acabou-se o que era doce, para a mulher do arroz-doce. Acabou-se a democracia em Macau. Estou a exagerar, é, senhor doutor? Então explique lá a este néscio e ignorante como funciona isso do "harmonia", ou da "paz social". É preciso compreender que o Largo do Senado é um local de comércio, oui, oui, uma autêntica Alexandria dos belos tempos, só que num dia de semana, e à noite. E o que vai ali de turistas, daqueles da República do Congo ou da Costa do Marfim que se encontram normalmente por aquelas bandas àquela hora? Não vá uma velinha da vigília ganhar perninhas e queimar-lhes a testa, coitadinhas. Ainda entornam a lata de cerveja de algum filipino e depois fica ali tudo molhado e pegajoso, já pensaram como era?

Perante tudo isto, como é que se podia permitir que esses vândalos que se auto-intitulam de "democratas" e de "patriotas" vão para ali durante quatro horas, com duzentas cadeiras descartáveis apresentar duas peças, fazer dois discursos e, imaginem só, exibir um filme! E isto tudo até às dez e meia da noite, horas indecentes para uma cidade que quer ir dormir cedo, para cedo erguer, e abrir o comércio, e tocar com a economia para a frente. Sim, sim, porque isto das ideologias é muito bonito, mas não enche a barriguinha a ninguém. Perguntem a este povo que lava no Rio Casino e restantes se preferem acender velinhas pelos meninos que se portaram mal e por isso levaram tau-tau, ou se querem ir fazer dinheirinho, que é bom a gente gosta. "Dinheirinho, claro!", respondem eles, enquanto se esforçam para erguer a espinha curvada, exibindo o sorriso amarelo, sem dentes, sem raça sem nada. Sem vida. Ai nós os vivos, se é que nos podemos chamar assim...

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