segunda-feira, 14 de abril de 2014

Antepassados, ontem e hoje


Permitam-me usar este espaço que é de todos, esta pequena casca de noz que navega despercebida no revolto mar as letras em Macau para reproduzir este excelente texto da minha amiga Ana Cristina Alves, professora universitária e sinóloga por excelência, publicado na edição de sexta-feira do jornal Ponto Final, e dedicado ao tema do "Cheng Ming", ou Festival da Pura Claridade, cujo feriado foi assinalado no passado Domingo, dia 6 de Abril - e fica desde já a devida vénia à autora. Sei que isto vem um pouco tarde e a más horas, mas apenas hoje o texto ficou disponível na edição electrónica do jornal em questão, e ao qual aproveito também para agradecer. "Antepassados, ontem e hoje" é mais um testemunho de alguém que conhece por dentro a cultura chinesa, e tem a bondade de partilhar generosamente connosco a sua experiência. Um enorme abraço à Ana Cristina Alves, e como não me canso de lhe dizer pessoalmente, estou sempre à espera de outros artigos deste calibre, e sempre com vontade de saber mais.

Ontem e hoje como é a relação dos chineses com os antepassados? Terá evoluído como em tantos países ocidentais onde o respeito pela autoridade dos mais velhos se perdeu e os laços tecidos pelos afectos tantas vezes se desfizeram?

Esta pergunta vem a calhar nas cercanias da Festividade da Pura Claridade (Qingming jie 清明節), que celebra em simultâneo o Culto aos Antepassados e a Primavera. Antes de mais, é preciso ver o que nos diz a história para compreender a relação tradicional dos chineses com os antepassados.

Há uma história milagrosa, quase uma lenda, como tantas das histórias tradicionais que correm pelo mundo. Nos últimos tempos da dinastia Qin (秦), o fundador da dinastia Han, Liu Bang (漢劉邦), após ter vencido o tirano da dinastia Chu do Oeste, Xiang Yu (西楚項羽) em batalha, foi à sua terra-natal visitar a campa dos pais, que devido aos anos de guerra desapareceu no meio da confusão das urtigas e dos túmulos destruídos e profanados.

Muito incomodado com a situação, solicita a ajuda dos subalternos, em vão, ninguém consegue encontrar o túmulo dos pais do novo imperador. É nesse momento que Liu Bang tem uma ideia inspirada. Pega num papel que rasga em pedaços, guardados religiosamente na mão, e confiando no Céu, profere:

“Pai, Mãe, que estais no Céu, agora que o vento sopra com força, vou deixar voar estes papelinhos, onde eles caírem e permanecerem, aí estará a vossa campa.「爹娘在天有靈,現在風刮得這麼大,我將把這些小紙片,拋向空中,如果紙片落在一個地方,風都吹不動,就是爹娘的墳墓。」

A protecção divina foi ao encontro da piedade filial revelada pelo governante e os papéis que se deixaram ficar junto a determinado túmulo, apesar do vento, indicaram de facto onde se encontravam os pais de Liu Bang, como este pôde verificar ao ler os nomes deles na lápide para a qual correu.

O Imperador ordenou que limpassem e cuidassem da campa, e desde então não houve Festividade da Pura Claridade em que não marcasse presença no cemitério onde jaziam os corpos dos seus progenitores.

O povo seguiu-lhe o exemplo e a cada nova festividade acorreu a visitar os seus mortos, limpando os túmulos e deixando uns papelinhos sobre eles em sinal de que já tinham sido limpos e venerados.

A tradição mantém-se até aos nossos dias. No entanto, podia ter-se transformado num acto quase mecânico, do tipo faz-se porque é costume, como quando guiamos um carro sem pensar no que estamos a fazer. Nada disso. Hoje já é possível venerar os antepassados via sites especiais na Internet, no entanto a maioria, quando tem oportunidade de o fazer, prefere o incómodo das deslocações para mostrar que é merecedora da protecção deles.

Os antepassados continuam uma força viva no seio da família após mais de meio século de influência de uma filosofia política laica. Há um lugar no Céu para as almas dos antepassados como nos explica o escritor e poeta Yi Sha (伊沙), que veio a Macau participar no segundo Festival Literário da Rota das Letras e colaborou na colectânea de contos em versão trilingue publicada pela Praia Grande Edições em Março de 2014. O Poema pertence ao conto A Primavera Traz Nova Vida à Cidade e intitula-se: Antes da Meia-Noite de 11 de Março, Quarto 1030, Hotel Royal Macau.

O poeta relata que a mãe morreu num dia 11 de Março entre as onze e a meia-noite. Desde a sua partida há dezasseis anos, a senhora tem vindo visitar a família sempre na mesma data, e especialmente o neto, nos três anos subsequentes, então o menino chorava cerca de uma hora sem haver quem o calasse:



No ano em que a minha mãe partiu

O meu filho ainda não tinha dois anos

E nos três anos que se seguiram

Ele era assombrado pelo histerismo

Nessa precisa data

Chorando durante uma hora com os olhos cerrados

Recusando-se a acordar

E o meu pai costumava dizer “Não te preocupes

Ela voltou apenas para ver o neto.”

(2014: 161)

母親離去的那年/兒子還不到兩嵗/在後來的三年裡/他每年每到這一天/這個時間段/都會發癔症/眼大哭一個小時/怎麽叫也叫不醒/父親說:〈不要緊是奶奶來看孫子了!〉(2014: 128)

As relações entre os antepassados e os seus descendentes continuam tão chegadas como dantes, como indica a passagem anterior, ou a carinhosa interrogação dirigida pelo eu poético à mãe, por considerar que ela tinha aparecido a visitá-lo em Macau, como é indicado em algumas das estrofes. Quando ele estava muito cansado e adormeceu no sofá do quarto do Hotel Royal surgiu depois inexplicavelmente na cama, pelo que considerou serem as artes veladoras da sua mãe agora a habitar no Céu dos Ancestrais: E ainda tiveste tempo de me visitar a Macau?/ Tão conveniente, nem é necessário visa. (Ibidem) 您今兒是有空/來看兒子了嗎/竟然跟到澳門來了/無須簽證很方便是嗎 (Ibidem)

Depois a despedida, a confissão de que não está mal, embora pudesse estar muito melhor se em lugar de ela o velar no Céu, estivesse com ele na Terra, aí sim, ele sentir-se-ia verdadeiramente abençoado.

O luto dos filhos chineses de todos os tempos perpetua-se por longos anos, possivelmente até voltarem a reencontrar os seus numa outra esfera, a celestial, onde se situam os paraísos de imortais, das divindades budistas e dos antepassados. O fundador da dinastia Han, não mais deixou de visitar os seus mortos, inaugurando uma prática modelar por entre o povo, que não se esgota em visitas aos cemitérios. Também nas casas a presença dos Antepassados se mantém constante e actuante contra todas as ideologias que apregoam delírios e ópios à sua existência.

Bibliografia

Internet

清明節故事http://content.edu.tw/local/taipei/tpteach/holiday/c3.htm



Livros



Alves, Ana Cristina. 2004. Uma Viagem De Muitos Quilómetros Começa Por Um Passo, Macau: Cod

伊沙2014木深在《思無邪》,澳門:Praia Grande Edições


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