quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Requiem por um amigo de quatro patas (eterna saudade)


Era uma vez um amigo...

Amigo é alguém que está sempre do nosso lado, que nunca nos atraiçoa, que nos escuta e nunca nos julga. Um amigo de verdade nunca nos evita, quer estar sempre connosco e inventa sempre desculpas para nos ver de novo. A um amigo custa ver-nos pelas costas, encontra sempre um motivo de conversa, "empata-nos" sempre mais um bocadinho. Com um amigo os momentos de silêncio nunca são de desconforto, e nunca falta um motivo para mais uma rodada de conversa. Os amigos nunca se cansam das mesmas histórias, riem do que parece não ter graça mas só eles sabem porque riem, partilham de uma cumplicidade que deixam bem guardada entre eles, longe dos não-amigos, que nunca os vão conseguir separar. Ontem perdi um amigo, o Bo Chi, ou em ingles "BB", mas para mim era o meu melhor amigo de quatro patas - quando não se colocava nas duas de trás ou de barriga para cima.


Desculpa "darling", é que acabei de acordar...

Conheci-o numa loja de roupa aqui perto de casa, onde trabalha a minha amiga Melinda, e cuja proprietária é a minha também amiga Amy, que só depois viria a conhecer - tal como o Bo, também a minha relação com a Amy assenta na base da cordialidade, muito por culpa da barreira linguística. A primeira vez que lá entrei ladrou que se desunhou, desconfiado do intruso que entrava ali tão à vontade no seu domínio, sem sequer lhe pedir licença, a ele, o "homem da casa". Fiz-lhe umas festinhas que não o deixaram convencido: continuava a ladrar como quem chamava a polícia. Mudei de estratégia, afagei-lhe o lombo e apertei-lhe o focinho com a firmeza de uma mão masculina, mas sem magoar. O que os meus gestos em forma de afectos lhe queriam transmitir era isto: "olha lá pequenote, não tenho medo de ti mas gosto da tua pinta; amigos ou quê?". Rosnou, olhou-me de soslaio, meio desconfiado, e acedeu: "'tá bem, mas da próxima vez quero colo".


Sempre na moda, "very fashionable indeed".

Quando visitava as amigas e o meu novo parceiro canino, que festa fazia ele. Virava-se logo de barriga para cima, e antes que lhe desse o tratamento de cachorro mariconço que me pedia, fechava os olhinhos e começava a rosnar, como se já estivesse a sentir os meus dedos a passarem-lhe pelo papinho de raposa, apenas por sugestão. Quando passava um pouco mais à pressa pela loja, evitava passar à porta, e optava pelo outro lado do passeio, junto à fábrica de oleo de porco aqui ao lado na Rua do Tarrafeiro. Se estava amarrado pela trela à porta, via-me e levantava as orelhas, olhava para trás e depois para mim outra vez, como se estivesse a pedir às donas: "olha vai ali o coiso...não o vão chamar?"


Em flagrante com uma amiga felpuda.

Um dia a Melinda, a Amy, e o Bo jantaram lá em casa. Para nós comida de humanos, tão banal que nem me lembro o que foi. Para ele um manjar de um rei: pedaços de salsicha, chouriço português e duas fatias de bacon. Enquanto nós, animais racionais, ainda nos preparávamos para começar a comer, já ele tinha limpado a prato - e depois? Como o nome indica, nada precisa de ser racionalizado, e a gente está aqui para comer ou para dançar o vira? Muitas das vezes quando o visitava ladrava-me queixinhas das donas. Ele, um macho ali à mercê do mulherame, precisava de um camarada de armas para desabafar. Pegava-o ao colo e enquanto lhe fazia umas cócegas perguntava-lhe: "o que foi, as malandras fizeram-te mal, foi?". E ele ladrava, incessantemente, como se estivesse a contar tudo, tim-tim por tim-tim. Só parava para tomar mais fôlego para voltar a ladrar. "Só tu é que me entendes, ó Leo".


Mesmo já sem respirar, transpirava classe.

Já não o via ia para umas três semanas, e ignorava o facto de se encontrar doente. A Melinda disse que foi tudo muito repentino, uma infecção súbita, e teve a gentileza de partilhar esta última imagem do Bo, já para lá das fronteiras do desconhecido, onde para sempre ficará em paz. Descansa agora, amigo, que as saudades só doem aos que por cá ficaram. E sabes o que mais? Tu só vieste reforçar aquela máxima que cada vez mais acredito ser uma verdade mais que verdadeira: "quanto mais conheço os homens, mais gosto do meu cão".

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