segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Cabelo e orelhas


Quando era ainda um chavalinho imberbe, ia cortar o cabelo mês sim, mês não ao barbeiro lá da terra, a quinze minutos a pé de casa. Não me recordo do nome do "baeta", mas lembro-me que era um sportinguista ferrenho, e o futebol era sempre o tema de conversa entre as tesouradas no couro cabeludo ou o deslizar da navalha no rosto dos fregueses. Quando me cortava o cabelo e queria pedir para que não me mexesse muito, tinha um jeito curioso de o fazer: "Fica quieto senão corto-te uma orelha". Eu sempre achei esta imagem horrível. Cortar uma orelha? Que radical. Isto deve ser uma daquelas coisas que além de causar uma dor lacinante, deve deixar tudo à volta salpicado de sangue. Quando imagino que Van Gogh cortou uma orelha para mandar como presente para a amante, fico a pensar que raio de droga andava aquele gajo a tomar. Depois penso que o amor, ele próprio, pode-se tornar na mais perigosa das drogas, especialmente se for injectada na veia artística - como neste caso particular. A namorada deve ter adorado a atenção, pendurou a orelha ao pescoço com um fio, e mostrou às amigas, toda vaidosa: "Já viram o que o Vicente me mandou de presente? Ignorem o cheiro a cadáver".

Isto tudo a propósito de uma notícia chocante, que só de pensar causa-me calafrios. Uma mulher chinesa de Xiangyang, Hubei, chateou-se com o sobrinho de seis anos de idade e para castigá-lo cortou-lhe as orelhas e um pedaço do queixo. Zhang Qihui, de 35 anos, teve uma grande discussão com o filho do seu irmão, e para lhe ensinar "maneiras" levou-o para um beco atrás da sua casa, onde procedeu à brutal agressão. Quer dizer, o que pode justificar um castigo desta natureza? O Ocidente continua a olhar para a China como uma civilização bárbara, onde ainda se aplicam os castigos corporais como método "educativo", e este tipo de notícias não abona nada a favor de quem ainda acha que "não é bem assim". Quer dizer, este é o tipo de punição que o Dr. Fu Manchu aplicava aos seus inimigos: "cortem-lhe as orelhas e atirem-no às formigas amarelas". Se calhar a senhora tem uma costela sevilhana e julgava estar na "plaza". Depois de decepar as orelhas, e na falta de um rabo, procedeu ao corte de um filete do queixo da pobre criança.

O que pode ter feito a pobre criança para merecer um castigo deste tipo por parte da tia? Se a tivesse violado - improvável, uma vez que tem apenas seis anos - ainda existiria uma atenuante. Ou se tivesse afogado o primo recém-nascido no rio, sei lá, mas isto? A razão que apresentou deve ser algo para lá de fútil, do tipo "faltou-me ao respeito", ou "fez-me perder a face", o que é algo a que os chineses dão muito valor. Mas felizmente nada do que possa ter apresentado como desculpa lhe valeu, pois os vizinhos ouviram os gritos de dor do pequenote e cercaram a agressora até à chegada das autoridades. Mas de nada adiantou à pobre criança, uma vez que apesar do cuidado em levar as orelhas dentro de uma caixa de gelo até ao hospital, os médicos já não foram capazes de as reimplantar. É por isso que quando o meu baeta me pedia para ficar quieto enquanto fazia bailar a tesoura à volta dos meus abanos, eu obedecia. Permanecia mais imóvel que a múmia de Mao.

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