domingo, 24 de novembro de 2013

Ilusão, tontura e mentira


Sempre que se fala de droga em Macau, fico preocupado e triste. Preocupado porque como qualquer pai preocupa-me que o meu filho se perca pelos labirintos do vício, que o veja sofrer a enfrentar um inimigo tão poderoso, e não me resta senão orientá-lo no sentido de não cair nessa armadilha. Triste porque sou o único que lhe pode valer nessa luta para se manter afastado do degredo que é o vício. Em Macau não se leva o problema da droga a sério. O combate passa por meter consumidores e traficantes na prisão, e a prevenção passa por avisar que para quem fizer o mesmo, espera-lhe a mesma sorte. O combate e a prevenção confudem-se; ao meter um toxicodependente e o tipo que lhe vendeu a droga na prisão está-se a "combatê-los", e assim "previne-se" que voltem a fazer o mesmo, pelo menos durante alguns anos. Com estes dois fora de combate, aparecem outros, cada vez mais, e o que fazer com eles? Cadeia, que vai chegando para todos, e se não chegar fazem outra. Tapa-se a cabeça e destapam-se os pés, e lençol está cada vez mais curto.

O combate à toxicodependência é o combate ao tráfico. O tráfico mistura-se com o consumo. Quem consome e quem vende é basicamente o mesmo agente do mal, pois o consumidor está a ser cúmplice do traficante. Se há traficantes, é porque existem consumidores: é a lei da oferta e da procura. Os meios justificam os fins; o tráfico aumentou? O consumo também? Estão a ver como é preciso meter estes gajos todos na cadeia? Se temos baratas em casa, matamo-las. Se amanhã temos mais, continuamos a matá-las. Se todos os dias vamos tendo mais e mais baratas, a solução é continuar a eliminá-las, e não mudar de casa. Por incrível que pareça, este exemplo um bocadinho parvo que usei aqui com as baratas assenta como uma luva no caso da toxicodependência. O aumento do consumo serve para justificar uma acção policial mais intensiva, penas mais pesadas, e nenhum dó ou piedade. Em Macau o quê interessa mais do que o porquê.

Os números do consumo são isso mesmo: números. O aumento serve para justificar tudo e mais alguma coisa, desde que metam estes malandros na prisão. A maioria da população composta por gente feliz, saudável e obediente nem quer ouvir falar de droga, e concorda com a lei da moca para resolver o problema. Não lhes passa pela cabeça que da próxima vez que estes números aumentarem, incluam os seus filhos, netos, irmãos, esposos ou namorados. O problema só deixa de ser dos outros quando entra pela nossa casa. Aí vamos querer que a moca não bata com tanta força, mas vai continuar a haver quem queira que se bata ainda com mais força; nós sabemos disso, pois já estivemos desse lado da barricada. Antes nem queríamos ouvir falar de droga, não queríamos saber se há umas piores que as outras, pois para nós era tudo o mesmo, uma porcaria. Subitamente desperta-nos a curiosidade.

Em Macau os números estão a cargo do Departamento de Prevenção e Tratamento da Toxicodependência, um orgão sob a tutela do Instituto de Acção Social, mas podia muito bem ser da Direcção de Serviços de Estatística e Censos, ou da Polícia Judiciária. Previnem e tratam a toxicodependência, como o nome indica? Não, apresentam números e sugerem medidas punitivas. No âmbito da Comissão de Luta contra a Droga, o chefe deste departamento, um tal Hon Wai, divulgou a semana passada os números relativos ao primeiro semestre, e ficámos a saber que há mais 83 toxicodepentes que no semestre anterior, e que o "ice" passou a ser a droga de eleição entre os jovens com menos de 21 anos, mas que no geral o consumo de ketamina aumentou. Tenho pena que não estivesse ali alguém para perguntar "desculpe lá, senhor Hon Wai, mas se o seu departamento devia supostamente prevenir o consumo, porque é que este aumentou e o senhor está aqui com esse ar de tolinho a dizer-nos isso mesmo?". Ele bem podia responder com este facto interessante, que aliás usou como justificação: o aumento do consumo de droga no domicílio "o que torna mais difícil a detecção". Eureka! A solução é instalar cameras de vigilância com ligação à PJ na casa de toda a gente, e fica o problema resolvido.

Por falar em medidas preventivas radicais, Hon Wai anunciou que a comissão não tenciona implementar o plano de análises à urina nas escolas do território, de modo a detectar jovens consumidores. Isto porque a medida foi lançada em Hong Kong, e não foi detectado nenhum caso. Aleluia! Digam-me quem é o santo ou santa padroeira de Hong Kong para eu lhe acender uma velinha. Fosse esta ideia tão descabida quanto evasiva adiante, que alunos seriam submetidos a essas análises? Todos? Impossível. Qual o critério? Os mais pobrezinhos? Os mais problemáticos? Aqueles com piores notas? Os menos sociáveis? Certamente como todo o resto em Macau, existiriam alguns "acima de qualquer suspeita".

Hon Wai é aquele rapaz simpático que vemos ali na imagem, ao meio, entre duas outras paladinas o combate à droga. Reparem no seu ar angelical. Isto é que é um bom menino, que nunca deve ter fumado um pintor em toda a sua vida. No entanto ele diz-nos que o "ice" é uma droga que cria "ilusão nos pensamentos", ou que a ketamina provoca "tonturas", e que a marijuana causa "paranóia". Não quero dizer que é preciso um ex-toxicodepente ou alguém que já tenha fumado um charro para saber do que fala, e isso nem faria sentido, pois trata-se aqui de prevenção. Só que convém pensar um bocadinho mais para entender aquilo que não se aprende nos livros. Quem é que quer sentir tonturas, paranóia ou ilusão, ou sentir-se mal? Acham isso normal? Os nossos jovens são estúpidos ou quê? A velha máxima de "a droga leva à morte" é engraçada. Se alguém quiser morrer, para quê recorrer à droga? Pode saltar do topo de um edifício ou rebentar os miolos com um tiro, que sai mais barato.

Em vez disso sugere-se penas mais duras, incrementar a cooperação com regiões vizinhas de modo a combater estes criminosos malditos, incluir tudo o que dê "moca", provoque "ilusões" ou "paranóia" na lista de substâncias proibidas. Proibir, proibir, proibir. Prender, prender, prender. O que interessa a diferença entre o "ice" e a ketamina? É tudo a mesma porcaria. E o Panadol? Não, porque se vende na farmácia, ó estúpido. E se proibirem? Se proibirem é porque é mau, e toca a prender toda a gente que toma Panadol. Porque é que os jovens se iniciam nas drogas, afinal? Porque são maus. Se calhar estão possuídos pelo demónio.

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