quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Francis Tam e a porta aberta


Dos cinco secretários que apresentam anualmente as Linhas de Acção Governativa (LAG), sempre considerei que Francis Tam é aquele com a vida mais facilitada. Florinda Chan, a mártir, e Lau Sio Io, que não tem sido poupado ao efeito avalanche que foi Ao Man Long, têm tido a tarefa mais complicada, enquanto Cheong Kwok Wa e Cheong U encontram um caminho mais ou menos sinuoso, mas saem menos chamuscados. A secretaria para a Economia e Finanças é aquela que aparece sempre de fato novo e sorriso de orelha a orelha exibindo os dentes brancos. As contas do território são sempre feitas por cima, e Francis Tam dirige a tutela praticamente em piloto automático. E olhando para o Relatório das LAG para o Ano Financeiro de 2014, entendemos porquê. Caso se concretizem os objectivos propostos, a população de Macau vai ter uma vida óptima. Vai ser bestial. Mas este ano a bela trouxe consigo um senão. Com as folhas lisas e brancas, vieram uma série de cotovelos para esbarrar no tinteiro. Francis Tam teve uma tarefa mais complicada do que o habitual.

O secretário que se mantém encarregado das contas desde 20 de Dezembro de 1999 parece cansado, com a imagem gasta. São já 13 LAG, a parecendo que não, isso cansa. É certo que é apenas uma vez por ano que Francis Tam aparece no hemiciclo para dar o peito às balas, mas vai sendo difícil inovar, apresentar um discurso diferente. Se ouvirmos a apresentação das LAG para a Economia de 2002, 2006 ou do ano passado, não encontrariamos grandes diferenças. A novidade este ano foi a legislatura, a quinta desde a criação da RAEM. A composição da AL resultante das eleições de Setembro trouxe algumas caras novas, e para quem pensou que isso é bom, ou que a predominância do sector empresarial podia significar mais harmonia, e que se falasse sobretudo de negócios, enganou-se. Sem poder questionar os números apresentados por Francis Tam, da generosidade dos subsídios ou da saúde da reserva financeira, as baterias foram apontadas para o mais evidente: a inflação, a habitação, os salários, a qualidade de vida da população em geral. No centro deste fogo cerrado estiveram sobretudo os trabalhadores não-residentes (TNR). Os franco-atiradores mais activos foram duas novas deputadas.

Já falei aqui na segunda-feira de Song Pek Kei, a terceira deputada da lista da Associação dos Cidadãos Unidos de Macau, de Chan Meng Kam. A reacção às declarações da deputada partiram de toda a parte menos de onde realmente importa: da população de Macau residente no território há duas ou três gerações, dos "ou mun ian". Os portugueses e macaenses ficaram chocados com a demonstração de racismo, xenofobia e intolerância da parte da deputada, e suponho que a comunidade de Fujian, de onde a família de Song é originária, terá aplaudido e pedido bis. Sugerir que os TNR não têm direito de frequentar os mesmos locais que os residentes é digno da introdução de algum plano de genocídio a longo prazo, da "solução final" do Terceiro Reich quanto ao problema dos judeus. Deixar Song Pek Kei proferir declarações desta gravidade sem a devida censura diz tudo da nossa classe política: amorfa, impotente, flácida, inexistente. Onde estavam Leonel Alves e Pereira Coutinho, que gritaram aqui d'el-Rei quando em 2007 Au Kam San sugeriu que os portugueses "foram ladrões"? Porque não censurou Francis Tam estas afirmações feitas contra quem contribuiu com o seu esforço para o desenvolvimento de Macau nos últimos 14 anos? Porque optou pelo silêncio a "vox populi" da RAEM quando atacaram as suas empregadas domésticas, as suas assistentes, as suas enfermeiras? Porque não saíu Angela Leong em defesa das centenas - senão milhares - de TNR que trabalham nos seus hotéis e casinos?

Mak Soi Kun, que não é um estreante mas também não é nenhum anjinho, propôs uma ideia revolucionária: mandar os TNR para a Ilha da Montanha, onde não chateassem os residentes. Isto sem os TNR e apenas com os residentes ia ser divertido, sem dúvida. Já agora permitam-me que vá mais longe; penso que deviamos criar "ghettos" um pouco por todo o território, para evitar conflitos culturais ou atritos derivados das diferenças étnicas. Assim tinhamos os chineses de Macau na zona norte da península, os macaenses na zona sul, os portugueses e outros "kwai-lous", bem como os "hak-kwai" na Taipa, e as aves-raras de Fujian, Jiangmen e do raio-que-os-parta, como Song Pek Kei e Mak Soi Kun, em Coloane, de preferência na praia de Hac-Sá, à beira-mar, à espera da maré cheia. Outra intervenção do mesmo calibre foi a da deputada Lei Cheng I, outra das novidades deste hemiciclo para o quadrénio de 2013/2017. Esta jovem promessa da parvoíce e da estupidez afirmou que "com salários de 4000 patacas, estão-se a atrair os TNR". Jura, sra. deputada? Que maldade. Vêm esses "estrangeiros" para aí comer do prato onde os outros residentes cuspiram, e que lhes foi posto na mesa por outros residentes ainda, estes mais endinheirados. Uma curiosidade interessante sobre esta deputada eleita pela via indirecta: é dos quadros da Associação Geral dos Operários, e membro da União para o Progresso e Desenvolvimento (UPD), da também deputada Kwan Tsui Hang, a grande derrotada das últimas eleições. Então foi para isto que serviu o tal 2+2, que permitiu mais dois deputados eleitos pela via directa, bem como pela indirecta? Para se fazerem estes "remendos"? Para se "cozinharem" estes empoleiramentos?

Das outras declarações dignas de constar do anedotário oficial destas LAG destaca-se Tsui Wai Kwan, um dos "meninos" da poderosa Associação Comercial de Macau, deputado nomeado pelo Chefe do Executivo, um daqueles que se é deixado de fora desta "brincadeira" chora e faz birra. O ilustre presidente da Associação dos Exportadores e Importadores de Macau e da Associação dos Fretadores de Macau, e que fez parte do Conselho Consultivo da Lei Básica, tudo isto apesar de ter apenas o ensino secundário, diz que a população de Macau "tem muita sorte", e que "devia-se queixar menos". Para ilustrar esta ideia, apresentou números: em 1999 o salário médio era 5000 patacas, e actualmente é de 15000 - o triplo. Esqueceu-se de referir que o preço da habitação é actualmente 10 ou 20 vezes superior ao praticado em 1999, mas isso também não interessa. O que eu gostava de ver era o sr. Tsui a viver em Macau com 15 mil patacas. Por dia? - perguntaria ele. É fácil! Pois pois. Está bem abelha. Estranhamente discreto esteve o nosso "tio" Fong Chi Keong, provavelmente preocupado com esta "caça aos TNR", e de como seria se precisasse de depender apenas da mão-de-obra local para realizar as empreitadas da sua empresa de construção Man Kan. Deve ter levado as mãos à cabeça quando o seu "pang-iao" Mak Soi Kun abriu a boca para dizer aquelas asneiras, mas desculpou-o, pois já tinha passado da hora de almoço do companheiro de armas, que tinha sido bem regado, como sempre.

Quanto aos restantes, Kwan Tsui Hang colocou o dedo na ferida, de grosso modo, sugerindo que os salários em Macau "são baixos". Não só concordo como acho um acto de coragem que alguém tenha finalmente apontado esse facto. É verdade que a media anda pelos 15 mil, alguns ganham 20 ou 25 mil, há agregados familiares que levam para casa 40, 50 mil ou mais, temos cheques aqui, subsídios ali, mas e o resto? O custo de vida é o de uma cidade moderna e desenvolvida, o que não é o caso de Macau. Um milhão de patacas chegam para uma mansão na maioria dos países da Ásia-Pacífico, mas em Macau não compram um rectângulo desenhado no chão a que depois chamam de "estacionamento". Habitações que em muitos países civilizados seriam condenadas e demolidas andam a ser vendidas em Macau por dois ou três milhões de patacas. Sim, estou com a senhora deputada. Os salários são baixos, incluíndo o meu. O sector pró-democrata, reduzido agora a Ng Kwok Cheong e Au Kam San, focou também a questão dos TNR, mas num quadro que comparado com as intervenções radicais dos que referi acima, faz com que pareça que os estão a convidar para dormir na sua sala. Outro tema que esteve na ordem do dia foi o das empregadas domésticas da China continental, que chegarão ao território em número de trezentas, a título experimental. Este é um tema que espero abordar num futuro próximo, quando tiver mais informação e uma opinião formada sobre o assunto.

Quero acreditar que a vaga populista que tomou de assalto a AL na segunda e terça-feira foi nada mais do que isso: populismo. Não faz sentido pensar que podiamos mandar embora os TNR do dia para a noite, ou impedir que se contratem mais, uma vez que o mercado de trabalho mete água por todos os lados com a falta de mã-de-obra, e afecta sobretudo as pequenas e médias empresas. Só faltava os "radicais" anti-TNR terem afirmado que os residentes não têm direito ao empreendedorismo, e que deviam deixar isso ao cargo das grandes marcas, dos monopólios e das empresas familiares que vão ditando quem pode e quem não pode ter direito a contratar mão-de-obra estrangeira. Song Pek Kei, Mak Soi Kun e Lei Cheng I falam assim porque sabem que não é possível realizar os seus loucos intentos - nem lhes interessa tal coisa - mas assim ganham a simpatia da franja do eleitorado que confiou neles. Gente ignorante é eleita por gente ainda mais ignorante. Francis Tam, que tem "calos" e já aturou tudo e mais alguma coisa, deve ter respirado fundo quando encerrou a apresentação das LAG da sua tutela no final da tarde de terça-feira. Estas serão muito provavelmente as suas últimas, e neste momento estará a pensar: "ao que estamos entregues". Quem vier atrás que feche a porta.

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