segunda-feira, 18 de novembro de 2013
A Manila das grandezas
Tentei passar a maior parte do último fim-de-semana em casa, por razões que penso não ser necessário explicar porquê. Ontem a meio da tarde resolve ir até ao Mercado de S. Domingos comprar limas e limões para garantir a quantidade de vitamina C que me proteja das traiçoeiras oscilações de temperatura próprias da época. Caminhava pela secção de frutas do mercado, no rés-do-chão sem muita pressa mas disposto a despachar-me e voltar para casa. Compras feitas, vou pedindo licença a quem se demora pelas bancas a olhar as bananas, a conferir a rubreza das maçãs ou a verdura dos melões. Domingo é sinónimo de folga para muitas empregadas domésticas filipinas e indonésias, e a zona do centro, do Largo do Senado e arredores, é o seu local de eleição para gozar o descanso. Foi um par das primeiras, duas senhoras filipinas de moldura ampla, com que me cruzei algures entre as melancias e as pêras. Como vinham ambas em amena cavaqueira, esquivei-me pelo lado direito de uma delas, da mais gordita. Mantive o meu olhar sempre na mesma direcção, a da frente, e ao ultrapassá-la dou-lhe um ligeiro toque com o ombro - tão ligeiro que não chegava para espalmar um aranhiço - e ao sentir esse toque, a senhora exclama quase que mecanicamente: "putang ina mo!".
Ao escutar estas palavras que reconheci de imediato, interrompi a cadência dos passos largos que me conduziam para fora do mercado e a caminho de casa. Detive-me em choque, e mesmo não me podendo orgulhar de ser o mais perfeito dos cavalheiros, senti-me beliscado no orgulho. Se a tipa sentiu o ligeiro toque do meu ombro, senti dela uma descarga de mil volts a subir-me pela espinha. Para quem vive em Macau há alguns anos e teve o mínimo contacto com a comunidade filipina, sabe o que significa "putang ina mo". "Putang", atendendo a que o tagalog, língua oficial daquele país, tem influências do espanhol, significa exactamente o que estão a pensar. "Ina" é uma forma pouco cordial de se referir à mãe de alguém, um pouco como o cantonense "lou mou". Finalmente "mo" significa "teu" ou "tua". Agora juntem as peças e olhem para o puzzle. Existem interjeições no idioma filipino para expresser surpresa ou medo, como "puke", ou "títe", que apesar de serem igualmente calão, não se dirigem à cidadania de alguém em particular. Recorrendo a este tipo de linguagem, esta pessoa demonstrou uma enorme falta de classe. A peixeira mais refilona da lota de Matosinhos pareceria uma "lady" ao pé desta. Não estando ali presente a minha mãe para responder ao ultraje, senti-me na posição de receptor; era a mim que insultavam. Só me restava reagir.
Virei-me para trás, enfrentei a besta olhos nos olhos. Cinquentona, ou perto disso, mal vestida, com uma camisola preta, focinho de leitão esfolado mas ainda prestes a ser assado à boa moda da Bairrada. As bochechas rechonchudas e penduradas lembravam o nosso antigo presidente Mário Soares, o nariz parecia ter sido improvisado à pressa com plasticina para emendar algum esquecimento, e da tez pálida do estrogéneo destacavam-se algumas borbulhas, certamente reservas adiposas resultantes do consumo excessivo dos mortíferos "tocino" e "lunganissa", o equivalente a espetar uma palhinha num porco gordo e ficar a tarde inteira a chupá-lo. Perante a minha expressão de mauzão, fez olhos de cordeiro mal morto, e balbuciou um tímido "i'm sorry...". Os mais misericordiosos podem pensar que isto seria mais que suficiente como lição, mas o sangue que me corria nas veias ainda se encontrava em ponto de ebulição. Um simples toque com o ombro valeu-me o pior insulto que se pode dirigir a alguém numa nação de 100 milhões de alminhas, sem contar com a diaspora? Senti-me como se lhe tivesse atingido acidentalmente com um amendoím, e ela ripostasse com um tiro de canhão. Com um simples olhar, já a tinha com o coração ao pé da boca, mas achei pouco. Era altura de educar, garantir que pensava duas vezes antes de cometer tamanha ousadia. Estava na hora certa para tirar da caixa os meus instrumentos de humilhação.
Foi com uma voz temperada com o mais azedo dos desprezos que a olhei de cima, e com um ar enojado disse-lhe que entendi perfeitamente o que me tinha dito, e que o seu comportamento era além de reprovável. Já mais diminuída que uma formiga, repetiu "i'm sorry", engasgada, prestes a chorar de arrependimento. A sua amiga engolia em seco e apertava-lhe o antebraço, qual enfermeira que ata um garrote antes da picada da agulha, só que aqui em vez de agulha era um estalo que vinha a caminho. Ora, mas nada de violência, pois às vezes duas ou três palavras magoam mais que uma tareia de cinto. Já com o circo romano inteiro com o polegar apontado para baixo, desferi o golpe mortal, e disse-lhe que tinha mais que idade para distinguir o bem do mal, e posto isto virei-lhe as costas, mantendo sempre o semblante carregado de quem está ferido no orgulho. Gosto de pensar que lhe dei uma lição que dificilmente esquecerá. Seja em que língua for, temos de manter o respeito. É por essa mesma razão que não me desvio das multidões alienadas que encontro um pouco por tarde à parte em Macau dizendo-lhes "sai da frente filho da p..." ou "olha lá por onde andas, cabra". Chá, muito chá é o que a gente precisa. E quando se volta para casa, deixar o desaforo à porta, já agora.
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