quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Democracia: isso come-se?


A Comissão Eleitoral confirmou a eleição do nº 2 da lista Nova Esperança, Leong Van Chai, depois da recontagem dos votos brancos e nulos pedido pela candidata da lista 1, Angela Leong, ao abrigo de um regulamento que lhe permite pedir essa recontagem quando a diferença entre os dois candidatos é inferior a cem votos. Angela Leong, que a meu ver teve um excelente resultado, muito acima daquilo que merece, não gostou de ter perdido a eleição do seu vice por apenas 17 votos, e por isso quis ter a certeza que os votos broncos não eram na realidade votos na sua lista expressos com tinta invisível, aquela que os agentes secretos usam e que só se revela passadas 24 horas, ou se algum sapo num boletim considerado nulo não se transformou num príncipe de dentinho branco a sorrir no quadrado da sua candidatura. Foi debalde. Estava no seu direito, pois não pediu nada que os regulamentos não consagrassem, mas quem lhe diz que a Nova Esperança não poderia também ressucitar alguns votos considerados nulos nessa recontagem? Não seria de estranhar, pois atendendo à imagem em cima, que mostra dois boletins considerados válidos, valia tudo, até pintar o boletim a lápis de cor, desde que ficasse claro em que lista se votava. A única forma de um voto ser considerado inválido, segundo a CE, é se “o sinal de visto ficar colocado entre duas listas”. Mas olhem lá que mesmo assim ainda se podiam fazer alguns votos paralíticos erguerem-se e caminhar, com a ajuda de um super-microscópio, onde fosse possível determinar quantos nanomilímetros ficou o carimbo mais próximo de uma dessas duas listas.

Fico contente com este desfecho. A eleição do 2º de Pereira Coutinho sobre o 2º de Angela Leong foi um dos poucos aspectos positivos destas eleições. A nossa senhora dos casinos foi batida no “photo-finish” pelo padroeiro dos funcionários públicos, e depois deste “replay” pedido pelo derrotado ter confirmado a primeira projecção, respiro de alívio. É que Angela Leong não tem feito absolutamente nada nestes oito anos que leva de hemiciclo para justificar a sua eleição, quanto mais a de um segundo deputado. Isto seria premiar a inércia. Apesar de ter melhorado o seu resultado, tornando-se a quinta força mais votada – à frente de operários e democratas – o que é muito mais do que merece, a empresária não ficou satisfeita, sentiu-se enganada, e até parecia que lhe tinham passado a perna. É como se soubesse que resultado ia obter antes de se contarem os votos, e que o desfecho tivesse ficado “aquém do combinado”. Posto isto pondera mesmo recorrer às instâncias judiciais, como quem reclama algo que lhe foi prometido previamente em contrato e depois não lhe transmitiu. Esta estranha insistência - mesmo depois dos votos contados e recontados - não demonstra ambição política nem vontade de servir melhor a população com a ajuda de mais um deputado. Demonstra ganância, desprezo pela democracia, uma atitude de "quero, posso e mando".

Isto diz muito do que são as eleições em Macau e o que realmente valem. Os eleitores são como carneiros a quem se contam as cabeças, e pouco importa o que pensam do programa da lista designada a votarem. Quer dizer, que se lixe. Ninguém lhes vai cortar a cabeça, e a dor de ânus só se dá de quatro em quatro anos, e passa logo. Nos dias que se seguiram ao sufrágio, comento com colegas e conhecidos, e entre a troca de pontos de vista deixamos transpirar a lista em que votámos. Fosse eu a fazer a minha própria sondagem, e Pereira Coutinho obtinha uma vitória esmagadora, seguido do Novo Macau e de Agnes Lam. Não conheço uma única alminha que tenha escolhido qualquer das três listas mais votadas: Chan Meng Kam, Mak Soi Kun ou os “kai-fong”. Não me surpreende, pois não me relaciono com as comunidades de Fujian e Jiangmen, nem participo em reuniões da associação de moradores. A tipa da loja de roupas, calcinhas e sutimamas atrás da minha casa disse-me que ia votar na Angela Leong, e foi a única que conheço que o poderá ter feito. E nem sequer trabalha num casino, a sonsinha. Fico com a sensação que vivo num mundo completamente à parte, longe dos 60 mil residentes de Macau com capacidade eleitoral que escolheram as listas vencedoras. Devo passar todos os dias por dúzias de eleitores de Mak Soi Kun, ou “maksoikunenses”, e nem dou por isso. Preciso de frequenter mais a Areia Preta e o Fai Chi Kei para me inteirar da realidade que me rodeia.

Basicamente as pessoas que conheço votam em Pereira Coutinho, o Gandhi dos macaenses e dos funcionários públicos, só que mais corpulento e cabeludo, e a aposta de muitos portugueses no “voto útil”; no Novo Macau, e aqui incluem-se familiares, colegas e amigos chineses da classe média mais ou menos bem informados; e Agnes Lam, a favorita da elite mais atenta aos programas eleitorais e à retórica eleitoral. Acompanhei a divulgação dos resultados em tempo real na página do Novo Macau, e após um quinto dos votos contados, Agnes Lam mantinha-se com alguma firmeza entre os 14 primeiros, dando a entender que a sua eleição seria um cenário possível. Depois começaram a contar-se os votos na zona norte da cidade, o tal “centro de decisões”, e a candidata do Observatório Cívico “desapareceu do mapa”. Parece que por aqueles lados poucos conhecem Agnes Lam, e tenho sérias dúvidas que a candidata saiba onde fica o Bairro do Iao Hon. O que lhes faz falta para ser eleita – a ela e a muitos outros – é uma rede organizada que faça uma boa parte do eleitorado votar nela sem fazer perguntas. Apenas “porque sim”. Só com gente culta, bonita e bem informada, ou os seus alunos de comunicação (e pelos vistos muitos destes nem sequer votaram), não chega lá.

Na semana passada li no Ponto Final um perfil que aquele diário em línguai portuguesa fez ao candidato Chan Meng Kam, que viria a ser o vencedor indiscutível destas eleições. Fiquei comovido pela forma como subiu a próprio pulso, desde os tempos que chegou a Macau no início da década de 80, apenas com dezassete anos, e auferia nove patacas mensais a fazer cadeiras de vime. Depois passou a uma oficina de ferragens onde ganhava 14 paus por mês, “mas dois eram descontados, porque o patrão dava almoço”. Sorri quando o próprio confessou que “não é rico”, mas que o dinheiro chega-lhe ”para comer e vestir”. E alguém tem dúvidas? Isto é um homem que depois de pagar as contas mal sobra dinheiro para amendoins e jolas para acompanhar com a bola na TV, quanto mais para comprar votos e oferecer jantaradas aos seus simpatizantes. Mak Soi Kun, o segundo candidato mais votado, foi recompensado com mais um mandato graças ao seu esforço em prol do bem da população nos quatro anos que leva na AL. Qual esforço? Ora, vocês sabem, não preciso de estar aqui a relembrar. Os “kai-fong” roubaram um lugar aos operários, recuperando o protagonismo do chamado “sector tradicional” porque conseguiram juntar mais gatos no mesmo saco. Deve-lhes ter saído bem caro. Custou uma nota.

É curioso como as listas menos votadas se prontificaram a apontar o dedo à corrupção eleitoral e à compra de votos para carpir as suas mágoas. Além disso queixam-se do orçamento reduzido, que mal dá para imprimir uns autocolantes, quanto mais para andar por aí a distribuír porta-chaves e “happy meals”. Há por ali uns dois ou três que nem multiplicando os seus votos por vinte conseguiam eleger um deputado. Estas listas levam nomes onde se lêem palavras como “melhoramento”, “direitos humanos”, “activismo”, “classes baixas”, e de todos o mais comum, “democracia”. Isto da democracia é muito bonito, mas para aqui não é chamada. Não serve, paciência, querem o quê? A “democracia” não enche a barriga a ninguém.

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